segunda-feira, agosto 31, 2009
Ainda bem que estava meio adormecida durante as despedidas finais. O coração estava mais calmo e a alma ainda descansada. A cabeça, anestesiada, não nos incomodou. Quase que não reparei que se tinham ido embora para longe. Por muito tempo.
O tempo podia ter sido mau nos meus olhos, mas tivemos sorte, o amanhecer trouxe um céu limpo no nosso sorriso.
Afortunada. Mudaremos este final. Havemos de nos encontrar de novo, a meio caminho.
Fim
domingo, agosto 30, 2009
Foi a última noite e as horas eram preciosas. Não dispensámos o passeio nocturno e acabámos junto ao rio. O sol acabara de se deitar, sentámo-nos na ponte e tentámos não nos perder. A conversa fluiu, como sempre. Seguiríamos o curso do rio e cada uma de nós chegaria a casa algum tempo depois. Avisaram-me para ter cuidado e não virar à esquerda num certo cruzamento ou não chegaria ao meu país. Recitou-se um poema sobre o mar numa lingua que não compreendo, mas cuja musicalidade encanta. Faltou-me a memória para um poema de casa, mas não esqueci as histórias. Sentámo-nos de costas para a cidade e despedimo-nos. Cantou-se e aprendemos a contar tempos bizarros. O frio apertou e as mãos tornaram-se instrumentos de sopro sem vergonha na noite aberta desta cidade que nos acolheu. Rimo-nos. Há tanto mais a aprender aqui, com esta gente. Um dia, quem sabe, passearemos de novo junto a um rio pela noite. Noutro lugar. Talvez então já terei um poema para a ocasião.
sábado, agosto 29, 2009
Não vem escrito em lado nenhum. Inventam-se os livros de viagens, que aconselham todos os hoteis e restaurantes, os monumentos e museus essenciais ao turista e, quem os segue, sentes-se satisfeito por ter cumprido o programa e conhecer em profundidade o país. Mentira. As fotografias e o dinheiro gasto não chega. É preciso escavar, ir pelos caminhos estreitos, às terras escondidas e é preciso perder-se.
Perdemo-nos entre as gentes da pequena cidade. Uma rua enfeita-se de bancas onde cada família cozinha para nós. O prato é o mesmo, o entusiasmo o mesmo, o sabor tenta diferir para ganhar o concurso. São muitos tachos a cozer ao longo da rua, mas não é o que mais fascina. Sinto-me convidada em casa alheia. As famílias cruzam-se, cumprimentam-se, servem-se os pratos sem pedir nada em troca, traz-se mais farnel de casa, as crianças juntam-se à mesa e uma banda popular canta músicas do país vizinho, um irmão de armas e de história mas por vezes conflituoso. E não há livro que nos convide a esta festa. (Nem o Lonely Planet.) É preciso a família convidar. É preciso o país querer-nos lá, pegar em nós e partilhar connosco. Há muito mais além dos livros.
sexta-feira, agosto 28, 2009
Isto não volta mais. Todos juntos numa sala vermelha, celebramos a despedida e, apesar disso, sente-se um começo. Terminámos apenas de nos conhecer. Agora sei como soa aquele riso, sei que piadas esperar dali, sei em que ouvido desabafar, sei o olhar que me fará sorrir, sei que expressão aqueles lábios insistem em repetir e sei o sonho daquela alma. Sei agora por onde seguir, sei como mergulhar em cada um deles, descobri o caminho brilhante de cada um. Somos todos tão diferentes que é impossível não nos apaixonarmos pela harmonia irresistível destas diferenças. Sorrimos de igual forma.
Ela sorria e dançava no seu jeito típico, braços largos e elevados, libertos, e a alegria esvoaçava com ela. Observei-a. Acordo para tudo o que absorvi. Apercebo-me do quanto ela, a sua dança, o seu sorriso, fará a saudade apertar cedo, como cada particularidade de cada um de nós se crava como única na memória e vai insistir em regressar. O peito aquece e os olhos tentam controlar-se.
quinta-feira, agosto 27, 2009
Almoçávamos perto do centro e a ciganita veio estender-nos a mão com palavras incógnitas. Uma de nós imediatamente lhe oferece a sandes que tinha na mão e que se preparava para comer. A cigana não hesita em recolher a oferta, mas mantém-se perto. A doadora insiste, na nossa língua internacional, que já tinha que comer, que podia ir andando. A ciganita estende-nos a outra mão e recomeça o choradinho, indiferente à dádiva. Do nosso lado, há protesto, aponta-se para a sandes entre palavras que se repetem devagar para se tornarem mais claras e a ciganita acaba por perceber a lógica destas viajantes. Devolve a sandes e repete a lengalenga. Estupefactas, desistimos de ajudar.
As prioridades dos outros confundem-nos.
quarta-feira, agosto 26, 2009
Aqui há problemas de gente crescida. Aqui onde um prematuro, das outras margens, corresponde em tamanho à cabeça de um internado. Aqui não é a lingua a maior barreira de comunicação. Aqui perde-se esperança.
Na cama do fundo, M. Antov, repousando em coma, representa uma das consequências mais graves do contacto com uma espécie ameaçadora neste país: a carraça. Infectada com um bichinho devastador, trouxe uma encefalite severa a este senhor que se preparava para atingir a meta da velhice. Ali descansa, sem ser possível prever-lhe grande futuro.
Ao seu lado, outro senhor, adormecido no mesmo destino, é o resultado de vários episódios de uma tragédia que muitos temem na idade madura. Acidente Vascular Cerebral. Não se sabe a equação final.
Chamam-me a atenção para o seu nome. V. Antov. Irmão. Lado a lado no infortúnio, por mero acaso, numa casa onde não querem pertencer. Uma história que não se sabe, nem se quer, contar.
terça-feira, agosto 25, 2009
O doutor de nariz vermelho interrompe a conversa a três, de tradução simultânea. Vem entusiasmado e pede uma pausa no aborrecimento do serviço pouco concorrido de Pedopsiquiatria (é Agosto, há mais que fazer!) para pôr em marcha algo que traz planeado. A voz colocada e os gestos largos coordenam os sorrisos tímidos dos jovens internados, enfermeiros, médicos e psicólogos. Ao chegar a mim, não obtém resposta, mas a M. rapidamente o informa da minha insuficiência linguística. Já no inglês internacional, convida-me a tomar parte do filme que ele, o realizador, pretende fazer. Pois com certeza, vamos a isso. Coreografando energicamente todos os intervenientes, cria a cena: o sono da princesa adormecida sofre uma tentativa de violação por parte de um mauzão e sua cúmplice (eu), escondidos atrás de uma árvore e de um arbusto, mas é subitamente salvo pelo seu anjo da guarda que grita "Parem!" em eslavo, o que mata os vilões. O recém-contratado conselheiro continua a dizer que sim a todas as sugestões do realizador de nariz vermelho, como é suposto, e, em dois takes, fica perfeita. Há palmas, há muitos sorrisos, mesmo nos mais soturnos e sépticos à brincadeira, há agradecimentos aos actores e, para minha satisfação secreta, os narizes vermelhos distribuídos pelos participantes mais jovens englobam-me no grupo dos premiados.
Levo mais um sorriso para casa.
segunda-feira, agosto 24, 2009
Aproveitamos o bom dia para experimentar, finalmente, a bicicleta. Orientados por duas nativas amigas, andamos bem e depressa no verde e nas ruas, para não desperdiçar as duas poucas horas que temos.
Paramos junto a um palácio para casamentos e, pois claro, exigimos a fotografia de grupo. Armados de sorriso turístico, aguardamos o casal que atravessa a ponte para os abordarmos e pedirmos colaboração. Para grande surpresa nossa, assim que lhe estendemos a máquina, o senhor recusa-a e procura afastar-se aflitivamente de nós. Antes de desaparecer, as nativas pedem de novo, desta vez na verdadeira língua do casal, e, por fim, lá aceitam tirar gentilmente a fotografia.
Arrumamo-nos por entre bicicletas e murmurinhos curiosos e esperamos que o senhor, agora já sorridente, clique no botão. Já está!
Uma de nós vai recolher a câmara e agradecer mais uma vez. Quem o entendeu conta, junto ao grupo que fica no sítio, que, a princípio, o senhor julgava que o queriamos fotografar. Ela segura na máquina, vê a fotografia no ecrã, sorri ao senhor, agradece. Perguntamo-nos porque quereriamos nós tirar uma fotografia ao senhor ao estender-lhe a câmara. Esperamos em grupo que a câmara regresse para vermos nós o resultado final.
Por cima da cabeça de todos nós, o dedo gordo do senhor cobre o céu e as caras que estariam sorridentes. Perfeito. Não tiramos fotografia ao senhor mas ele insiste em aparecer. Já longe, não nos deve ter visto rir.
domingo, agosto 23, 2009
A visita estava a terminar e preparavamo-nos para nos despedir da cidade, visitando um último lugar. A caminho da estação, percorremos a rua sugerida por quem aqui viveu. Tínhamos apenas o nome e nem uma expectativa do que encontrar.
Após uma nova igreja que certamente não seria a atracção principal, não compreendíamos, ao longo da caminhada pelo percurso, o porquê daquela sugestão entusiasta. Até que, numa pequena entrada, a estranheza chama-nos a atenção. Dentro da cidade arrumada e limpa, as paredes pintadas, o ambiente suburbano e a descontracção da juventude surpreendem. Seguimos por esta perpendicular e visitamos a pousada da juventude que tem como quartos as antigas celas da prisão que ali se encontrava. Ao sairmos, confiantes de que deveria mesmo haver algo para nos deslumbrar naquela rua prestes a terminar, seguimos pela transversal antes de regressar ao caminho principal. O ambiente, violado pela arte das ruas, aconselhava-me um cuidado especial por me recordar locais pouco propícios para jovens como eu.
Até que entramos em Metelkova. Já não são grafittis, é algo mais. São imagens surreais, são paredes forradas de quadros, bustos, molduras, enfeites, cores, objectos. São padrões rosa e verde, são palavras de ordem, são telhados de linhas bizarras, são estátuas reinventadas. São carros explodidos com panos velhos, são placas inclinadas, são parques infantis no meio do turbilhão de formas e cores nunca antes vistas à luz do sol. Não compreendo onde estou.
A máquina fotográfica não pára, sinto-me tonta e incapaz de absorver tudo isto, confio na memória digital para me ajudar a observar mais tarde, com calma, cada detalhe deste espaço. Porque são só detalhes. Porque o conjunto precisa de um olhar cuidado. Porque nos invade e nos confunde. Porque é belo e bizarro. Porque não se espera e porque se destaca do resto. Porque existe.
Ainda atordoada, saímos do bairro e prosseguimos até à estação. Ainda bem que nos aconselharam este percurso, deixo Ljubljana de queixo caído.
sábado, agosto 22, 2009
Não toquei em Ljubljana. Entrei de mansinho, pela ponte dos dragões, que reclamam alguma atenção, e encontrei-me dentro da vida da cidade. O mercado resplandecia de cores e frescura, os comerciantes honestos forneciam as recordações e presentes imprescindíveis aos visitantes e os habitantes compunham a vivacidade deste quadro, ao som de uma banda Mariachi. Ljubljana está acordada, sorridente, cheirosa, e vem-nos receber.
Ao percorrer este quadro, o som mexicano desvanece enquanto um jazz popular surge gradualmente enquanto um novo trio surge ao fundo da rua. As três pontes, ensombradas por quadros suspensos no céu, abrem caminho para Perseven, o poeta enaltecido pela companhia da sua musa, que medita.
Subimos ao castelo, animado por inúmeros casamentos com acordeonista acompanhante que tomam lugar no topo da cidade. Passeámos no longo jardim denso que termina em mais música, desta vez um pequeno festival de cantautores croatas a favor da pacificação e termino dos acordos entre estes países vizinhos. Fugimos do temporal que se ameaça e sonhamos com os ombros doces dos amantes enquanto chovem folhas ao longo do caminho. Descobrimos uma galeria de arte mutada em padaria, que agradece um pequeno contributo à sua ajuda a cuidar do nosso apetite. Surpreendemo-nos com as aranhas gigantes e encantamo-nos com as luzes da noite de aguaceiros. Enamoramo-nos.
Mas não toquei em nada. Deixei tudo intacto, tudo tão encantador e confortável como encontrei. Não quis estragar nada porque tenho de cá voltar. Tenho olhares amigos a quem quero trazer aqui. Quero partilhar tudo isto de novo. Não lhe toquei para que espere o meu regresso.
sexta-feira, agosto 21, 2009
Honrados com o convite da prestigiada empresa farmacêutica para visitar a sua fábrica e aproveitar o dia à sua conta, seguimos cedinho para a barriga da galinha. Junto ao grupo heterolinguístico, vêem os hospedes do país, igualmente entusiasmados com o passeio de borla.
Admiro ao longe a naturalidade com que croatas, eslovenos e bósnios se entendem. A história comum permite-lhes este diálogo, agora pacífico e cúmplice. Mas, aos poucos, apercebemo-nos que, neste momento, esta comunicação não nos era favorável.
A mesa do almoço é longa e está animada, mas na ponta esquerda não se compreende o motivo. Os eslavos misturam-se e, por momentos, as latinas e as turcas presentes, as quatro únicas estranhas à sua linguagem, são esquecidas. As tentativas de integração são infrutíferas, pois os restantes não resistem à sua língua nativa. Desta vez, temos de nos bastar.
O passeio e a barreira comunicativa persiste no passeio fluvial da tarde. Numa pausa, as estranhas reúnem-se à parte, conformadas com a sua situação. Lado a lado, apreciamos o rio, admiramos a garça e partilhamos um pouco de casa. A galinha do vizinho, sempre melhor que a minha, parece tão grande como um ganso pelos lados da Turquia e o andandte schelet romeno é tão magro como o português. As diferenças entre os povos distintos do antigo império otomano fazem-nos sorrir e aprendemos o porquê da língua não ter ossos.
Os eslavos continuam o seu jogo de voleibol e nós prosseguimos no cozido internacional de línguas. Prefiro-o.
quinta-feira, agosto 20, 2009
Traz-se um vestido elegante para ocasiões destas. O convite do director da faculdade que nos recebe para o visitarmos e conhecermos a sua casa académica é encarado com respeito e honra. Aprumamo-nos nos fatos e nos vestidos, disfarça-se a loucura da viagem e veste-se o entusiasmo formal. Juntamo-nos aos estudantes locais e aguardamos instruções.
Surge-nos um jovem para nos receber, com um sorriso mais descontraído do que o esperado. Dá-nos as boas vindas e inicia uma revisão sobre a história da faculdade. Isto não vos interessa, remata, para matar o formalismo da sua posição como guia. Goza com algo que não entendemos bem, tal é a sua vontade de brincar com o que lhe foi incubido de nos contar, e segue rapidamente para a próxima paragem, já dentro do edifício. Entreolhamo-nos.
A visita guiada não melhora. Leva-nos para a sala errada, diz umas asneiras descontraídas no meio do discurso, sempre com o sorriso calão e desembaraça rapidamente os locais que lhe foram impostos de mostrar. Promete não nos demorar muito mais, mas não se despede sem perguntar se e onde fariamos festa hoje.
Demos por nós, pouco pouquíssimo tempo depois, cá fora. Entreolhamo-nos de novo. Terminou. Afinal não há recepção oficial pelo director, que, alguém nos informa agora, sofre de cancro e ninguém o vê há um ano.
Foi isto? Alguém tenta consolar-me, pelo menos houve oportunidade para te vermos com esse vestido bonito.
quarta-feira, agosto 19, 2009
Vemos os peixinhos do aquário municipal, os répteis que por lá se expõem, subimos a um dos dois montes da cidade, por entre as vinhas e os insectos, absorve-se a vista, tiram-se as fotografias necessárias, regressa-se à cidade para um jantar num restaurante pouco típico e, entre tudo isto, a conversa nunca pára.
Não se deve falar do que não se sabe, concordámos. É por isso que lhe faço todas as perguntas, as convenientes e as inconvenientes, porque a ignorância é enorme e o preconceito maior. O Islão mete-nos medo e revolta. Mas partilho uma vivência tão significativa com ela, a muçulmana crente e praticante (aquele termo que tanta vez usamos no nosso catolicismo), sem véu e sem a seriedade que tanta vez se retrata no jornalismo actual, que sou incapaz de não querer aprender e conhecer mais da sua fé. Desta vez, falamos das burcas, da mulher, do casamento, da fidelidade, do sexo. E, no fim de contas, as opiniões convergem e confundem-se, a moral é semelhante e não existem conflitos.
Há algo lá fora que não compreendo. Não sei de que diálogo falam se este, para mim, funciona tão bem.
terça-feira, agosto 18, 2009
Não é tudo tão linear assim. O tempo amadurece, os Homens e as Relações, mas fermenta a diferentes velocidades. As palavras constroem e ligam e nem sempre a linguagem é comum. A distância ameaça, mas não vence quando a alma nos dirige.
Porque confio, apesar do tempo relativo a que nos conhecemos. Porque me pesa o peito e sufoca na boca. Porque me dá espaço e conforto para o aliviar. Porque sorri, sempre. Porque aqui o tempo escasseia e não nos perdemos em enredos, falsidades e hesitações. Porque tudo tem de ser agora pois não há mais oportunidades.
Porque o quero.
E, apesar de tudo, permanece o espanto. O sorriso mantém-se e a cumplicidade aumenta. Atrasa o jantar para ouvir tudo o que tenho a dizer. Escuta. Apreende e compreende, devolve-me as palavras que preciso. E surpreendo-me, sim, pela simplicidade com que se forma uma amizade séria, completa, cúmplice, honesta, num lugar tão distante, numa língua que não é a minha e num tempo que não controlo.
Fascino-me com as possibilidades. Aproveito-as.
segunda-feira, agosto 17, 2009
Para prosseguir a animação da festa surpresa, aviva-se a guitarra e aclara-se a voz. Visto que a guitarra estava presa ao pouco que aprendera de cor, foi então sugerida pela voz um dueto novo. A guitarra, atlântica, tenta compreender então a música árabe que a voz de Constantinopla lhe apresenta. Os acordes são internacionais, mas a musicalidade e melodia exigem mais cuidado e atenção. Após uns pequenos ensaios, até ao encaixe da ideia base, a guitarra e a voz lá tentam juntar as peças e compor o dueto. A mão asiático-europeia dá algumas dicas aos olhos lusos para a guitarra não se desencontrar da voz e seguem. Juntas. Forma-se a canção e aos poucos a atenção dos instrumentos desprende-se, sem nunca se perder da melodia, e apreciam, por fim, o resultado final. A guitarra questiona o quanto da sua cultura se diluiu na acústica do sonoro árabe. Soube bem intrometer-se assim.
domingo, agosto 16, 2009
Mas antes de um recomeço de nova caminhada nestes corredores improvisados, alguém (quem mais?) sugeriu um momento para escutar. Só isso. Foi prometido, então, para a paragem seguinte. Parámos, a senhora explicou, deu permissão para uns momentos de escuta e o grupo anuiu.
E assim se fez o silêncio. Tão pesado e denso, detal forma profundo que o corpo implodiu para a sua verdadeira pequenez dentro deste monstro, sólido e poderoso, que nos engole pacificamente. Ouvimos as gotículas cair à nossa volta, em tempos caóticos, indiferentes à prepotência humana que as tenta admirar. Alguém ri, outro tosse, o silêncio, de apenas dois segundos, é rapidamente quebrado pelo incomodo geral e pela pressa da senhora. Foi o bastante, julga. Mas alguém (quem mais?) confessa que soube a pouco.
sábado, agosto 15, 2009
"É isto a praia." Onde? De queixos caídos, todos, portugueses e não só, procuram compreender aquela relva coberta de toalhas e gentes despidas, aquela pequena entrada de pedras pontiagudas para a água, aquelas bóias tão perto a delimitar o espaço para nadar, aquelas grades que separam a relva da rua atrás de nós e aquele porto de gruas gigantes poucos metros à direita a seguir à praia. Mas que praia?
Não há nada como o Atlântico. Saudades da areia.
sexta-feira, agosto 14, 2009
Chegámos, por fim, à costa. Aos hilariantes quarenta e sete quilómetros de costa, que impressionam pela sua pequenez uma portuguesa como eu. Porém, apesar de bem longe das costas algarvias, o ambiente da beira-mar adriática leva-me de volta às docas rodeadas de bares e sotaques diferentes que tão bem conheço do meu país.
Entre a restauração, o jazz toma lugar num anfiteatro aberto para a rua. Alguns de nós (algumas) atrevemo-nos a sentar para ouvir um pouco da música. O pé bate e o queixo descai ao impressionar-se com o virtuosismo dos guitarristas. A alegria propaga-se e a banda, aparentemente vizinha bem próxima deste país, fala-lhe como a um irmão, a um primo.
Chamam-me a atenção ao grupo que ouve a música de fora do anfiteatro. Meio grupo dança em pé de mãos dadas ao restante grupo, sentado em cadeiras um pouco diferentes das nossas, das que se movem por eles, das que se tornam parte de alguém quando assim é obrigada. E dançam também, dançam de volta ao entusiasmo e liberdade que as mãos amigas lhes indicam. O bailarico prende-nos a atenção e os sorrisos, sente-se o peso dos dias a aliviar.
quinta-feira, agosto 13, 2009
Aparentemente, rio-me sozinha. É certo que a diminuta expressividade da guia impede o reconhecimento inequívoco do humor de alguns comentários, mas pergunto-me se serei a única a compreendê-lo ou se será apenas distracção do resto do grupo. Prosseguimos a visita ao castelo de Ptuj.
A guia pergunta-se pelo dragão macho que parelha com o fêmea que lá existe. Os malteses arregalam a vista às suas cruzes, presentes nas vestes de antigos senhorios. Espantamo-nos com o único exemplar daquela flauta milenar, tão bem preservada. Pesam-se os fatos ruidosos de Carnaval e termina-se junto às armas que combateram por aqui.
Mas o que me fica está também nas palavras dela. Procurou mostrar-nos o erotismo escondido num quadro de viagens asiáticas ou de uma donzela que foi apanhada pelo seu predador. Sorri em simpatia com a nossa surpresa pela malícia de imagens tão inócuas actualmente, mas lamenta-se, para quem a ouve, que assim o seja, que a imaginação tenha sido abandonada e substituída pelo óbvio, o explicito, o fácil. Perdeu-se o erotismo de uma luva, um objecto oferecido, um ombro ao frio. Lamenta-se e, em simpatia, acompanho-a.
quarta-feira, agosto 12, 2009
Não preciso de tradução. Não percebo uma palavra do que se diz, mas sei exactamente o que se passa, o que se sente. As crianças são iguais em todo o lado.
Abraçada pela mãe, a menina, cinco anos talvez, observa o braço enquanto lhe tiram sangue. Não se queixa e brinca com o penso que lhe põem no braço, com bonequinhos. Chegou a vez do irmão, que esperava lá fora com a avó. Os gritos que há muito se ouviam entram pela porta e intensificam-se. O miúdo, dois anos mais velho, grita e implora à mãe que não o obrigue a tirar sangue. Chora o mais que pode. A mãe agarra-lhe o braço e aponta para a irmã, diz-lhe algumas palavras sérias e o rapaz, não deixando cair a sua máscara choradeira, olha com atenção para o penso da irmã e finge que isso não o acalmou. Continua a berrar. A avó olha para mim e, com um sorriso, encolhe discretamente os ombros, enquanto dá miminhos à neta no seu colo.
A mãe senta o filho no seu colo e abraça-o. Ele não deixou de berrar com toda a força que tem. A enfermeira pega-lhe no braço enquanto se encontra distraído, mas não demorou até ele o retirar com força das suas mãos. A mãe pega-lhe no braço e devolve-o à enfermeira. O miudo berra. A agulha prepara-se para entrar e, assim que entra, o miúdo tenta, em vão, gritar ainda mais, mas os seus pulmões já estavam a dar o seu melhor.
A mãe pede-lhe então para cantar consigo. E ele canta. Baixinho, sem tirar os olhos molhados do seu braço, canta numa voz de criança doce, sozinho, a canção que a mãe lhe pediu. O ambiente acalma e já conseguimos ouvir os nossos pensamentos. Torna-se, finalmente, agradável aquele lugar, em paz, a ouvir uma criança cantar alguma música tradicional, quem sabe, do seu país. Não era uma canção pequenina e ele não esqueceu a letra. Mereceu palmas quando terminou. A mãe pede-lhe mais uma, para que não se distraia e volte atrás. Ele canta. E não se ouvem mais gritos por perto. A infância faz-nos sorrir.
terça-feira, agosto 11, 2009
Os cuidados intensivos pediátricos surpreendem. Temos os milagres dos prematuros que insistem em viver, apesar de não terem entrado com o pé direito neste mundo. Impressionam-nos com a sua força e coragem. E depois há os outros casos, os que não deviam acontecer.
O menino nasceu bem. Criança de termo, saudável, o brilho orgulhoso nos olhos dos pais. Correra tudo bem. Ao terceiro dia, enquanto bebia o seu leite, enganou-se no caminho e aspirou o liquido para os pulmões. Enquanto o tratamento tardava em chegar, o oxigénio custava a entrar e o sangue não o conseguia transportar em quantidade suficiente até ao cerebro, orgão tão frágil às diferenças de concentrações dos seus combustíveis. A recuperação demorou tempo demais. A escassez em oxigénio sacrificou demasiadas funções cerebrais.
O bebé tem três meses. Entubado, não se mexe, ao contrário dos pequenos prematuros que exigem a sua vida. Está paralisado. Respira, abre os olhos, vive, mas não se mexe. Não há muito mais a fazer, o cérebro não se recupera assim, é demasiado frágil. A enfermeira cuida dele, veste-o, um braço morto de cada vez, e arruma-o no meio dos lençois. Por fim, coloca um peluche por baixo do braço do menino. Como se ele o tivesse ido buscar e lhe desse alento. O braço pende sobre o boneco e a imagem é natural.
O peito pesa. Não é suposto isto acontecer. O bebé tem de abraçar o peluche.
segunda-feira, agosto 10, 2009
Miúdos mimados há em todo o lado. Há mães mais doentes que os filhos. Há muita criança apaparicada que berra demais. E há os que surpreendem.
Uma otite doi. Duas otites doem a dobrar. A observação do ouvido é insuportável para qualquer pessoa. Fogem e gritam, contorcem os músculos faciais e desejam que termine. Adultos fraquinhos...
Apareceu-nos um miúdo de dois anos no consultório. De olhos azuis ternos, observava em silêncio a conversa da mãe com o médico. Duas otites. Seria necessário observar. A mãe sentou-o ao seu colo, segurou-lhe a cabeça inclinada sobre o seu peito e iniciou-se o procedimento. Esperava uma grande gritaria, espernear e tentativas de fugas, choro e desespero. Nada. Sereno, o menino dos olhos azuis apenas nos olhava, expectante, curioso. Um ouvido, outro ouvido. Silêncio na sala. Vai brincar despreocupado logo que terminam e a sua ternura mantém-se até à despedida.
Olha-se em volta e os médicos, enternecidos, não escondem o seu carinho pela criança. Uma paz.
domingo, agosto 09, 2009
Somos jovens e este é o nosso tempo para ser radical. Envelheço depressa, com queixas, dores e muita preguiça, mas, por vezes, acordo.
O rio não pára para nos ver passar. A água limpida contorna as rochas no seu caminho, as pequenas que formam o seu leito e as enormes que se impõem à sua frente. Há harmonia.
Já de equipamento vestido, aventuramo-nos nas suas águas. Frias. Muito frias. O equipamento disfarça mas os ossos das mãos destapadas não evitam uma pequena interjeição de dor. Coragem ao peito e corpo no barco, iniciamos a viagem.
Seis senhoras são conduzidas pelo instrutor. Com calma e paciência, explica-nos o procedimento e aplaude-nos o espirito de equipa. Vamos à frente, salvamo-nos de situações complicadas e orgulhamo-nos do grupo.
Pára-se duas vezes para saltarmos dos pedragulhos. Apesar do estímulo, um mergulho nas águas geladas basta-nos. Há outros aventureiros que saltam a seis metros. volto a sentir-me velha, mas não me importa porque estimo a vida.
De volta à corrente, passamos por um percurso mais complicado, mas as mulheres controlam bem a situação. Após o perigo, o instrutor informa que a grande rocha atrás de nós já matou seis pessoas. Enfim, a ignorância salva.
Chegamos ao fim sem uma única queda ao rio. Vimos a água brilhante, os seixos no fundo, os aventureiros aquaticos, as pequenas praias pelo caminho, as árvores, o riacho de onde bebemos, e as montanhas, a monstruosidade alpina que nos abraça e esconde dentro de si. No fim de contas, o que fica não é o radical.
sábado, agosto 08, 2009
Os olhos não chegam a compreender a grandiosidade. Vemos as linhas que definem os montes, mas não compreendemos a distância. As nuvens por vezes esbatem esses limites e a imaginação aproveita-se desta falha. Estamos rodeados de montanhas.
Cá em baixo temos o lago. Nele, cruzam-se os barcos turísticos, que roubam descaradamente os viajantes com dinheiro leve, com os patos e as cabeças de quem nada com eles na água azul, límpida. Há nenufares junto às bordas do lago. A única ilha do país espera pelos barcos no meio deste vale. Temos apenas meia hora para a visitar, que o barqueiro ladrão não espera mais. Pedem-nos mais umas moedas para subirmos à igreja (a religião paga-se?) e pedir um desejo ao sino. Talvez numa outra altura... Tiram-se as fotografias, foge-se das abelhas e voltamos.
Após alguns minutos de viagem, descobrimo-nos num lugar secreto (gratuito!), onde acompanhamos um rio a seu lado. Impressiona o verde denso, a transparência da água e o branco da sua turbulência. Fotografias. Respirações profundas. Crianças nas pedras junto ao rio e um cão que busca o pau por entre as rochas. Repetem-se fotografias. Tudo para podermos levar um pouco deste mundo que tanto nos escapa para casa. Temos saudades de ser parte disto. A cidade satura, Vintgar rejuvenesce.
sexta-feira, agosto 07, 2009
Mãe e filha vêm ao hospital por indicação médica devido a convulsões bizarras. Com ano e meio de vida, aqueles olhos azuis brincam pela sala, abrindo portas, puxando saias, provocando a médica estudante, enquanto a mãe mostra o vídeo com as ditas convulsões. A preocupação é notória na sua expressão, que dá colo e biberão assim que lhe pedem. Ao tentar examinar a criança, o pânico e a gritaria que inicia impedem grandes abordagens. São enviadas para o neurologista enquanto nos questionamos relativamente à verdadeira natureza dos ataques, a manutenção da consciência põe em causa o termo convulsão, mas somos incapazes de interpretar. A ignorância assusta e tememos o diagnóstico final.
O neurologista vem ter connosco e pergunta, em jeito de desafio, a nossa opinião. Se de facto se tratassem de convulsões, a epilepsia seria uma resposta fácil. Não sei, sr. Doutor. Pois bem. O que viste foi masturbação infantil, a menina obviamente não precisa de ficar internada.
Pois é. Quem é que esperaria uma justificação destas?
quinta-feira, agosto 06, 2009
Perguntam-nos pelo nosso país e, com um grande sorriso, apresentamo-lo. Começa-se sempre pelas praias, pelo bom tempo, salienta-se a capital e os arredores, recomenda-se o norte com as suas paisagens e tradições. Tornamo-nos mais caseiros e relembramos a nossa cidade, revelamos os seus segredos e fortunas, as festas e costumes e debatem-se as particularidades da língua. Temos orgulho.
E eles ouvem com atenção. Inclinados sobre a mesa e de sorriso sonhador, imaginam todas as cores e movimentos, os gestos, as roupas, os monumentos e o desejo cresce. O destino da próxima viagem converge para este canto místico que conseguimos criar com palavras. E, até nós, com o entusiasmo da descrição, apaixonamo-nos de novo pelo país que nos alimenta. Perdoamos este nosso amor. Esquecemos as lamúrias.
Temos orgulho.
quarta-feira, agosto 05, 2009
Pequenos milagres. Minúsculos. Têm pressa de nascer e cabem na mão. Alguns aguentaram-se no ventre da mãe 25, 26 semanas. Ainda não têm alvéolos, não conseguem respirar sozinhos e estão em risco de numerosas complicações. Mas são milagrosos.
Primeira radiografia: Pneumotórax direito. Segunda radiografia: Dreno do pneumotórax direito, novo pneumotórax esquerdo. Terceira radiografia: dois drenos. O menino já respira sozinho.
Há gémeos egoístas. Não se contentam com o que têm e roubam o alimento da mana. Sugam o sangue que não lhes pertence e nascem fortes e saudáveis e a pequena irmã vem passar uma temporada aos cuidados intensivos. A mãe espera por ela no edificio oposto, angústiada, sozinha após o abandono matrimonial. A menina cresce e luta com muita garra, contorce-se no seu sono e a sua pequena cara é já tão expressiva. Não gostou que lhe levantasse o pequeno cobertor, estava a dormir tão bem e não queria ser perturbada. Observo-a. É difícil entender a força de algo tão frágil. Vais ser tão grande e não te lembrarás destes tubos.
Somos um milagre.
terça-feira, agosto 04, 2009
Os olhos correm a mesa e as unhas brincam nas irregularidades da mesma. Apesar da fuga, fala comigo com gosto. Lembra-lhe, possivelmente, as traduções que gosta de fazer. Quando não está a calcular calorias.
Tem os olhos castanhos e o cabelo preto, com duas tranças e algum cabelo solto. As unhas vermelho sangue dão mais cor à mão fina que tem. É magra. Demasiado. Tem 15 anos e diz-se feia. Estranho pois é a mais bonita de toda a sala. Não gosta de aqui estar porque tem de se sentar para ver televisão, por isso prefere fazer puzzles, assim sempre se move e perde calorias. Fala-me de fotografia e do coro, do sonho de viver no Japão e ser designer gráfica. Adora o irmão mais velho e chorou quando, no último telefonema, lhe disse "I love you". Não quer beber água, deve ter calorias. Treme quando o faz, a perna não pára quieta e as sobracelhas caem. Tem de ser.
À despedida confesso-lhe que foi um prazer conhecê-la. Estende-me a mão com um sorriso e agradece. Tens de sair daqui, tens de te por boa, M.
segunda-feira, agosto 03, 2009
Estou longe do meu país e não dá para o esquecer. O objectivo é igual, tratar. A língua é um enigma. Os turistas diferem.
Uma família israelita com ralações. Os casacos negros compridos, barbas por fazer e um avô de patilhas longas descrevem os homens da família. Com um inglês perfeito (sotaque britânico?), as mulheres, de roupas sóbrias e defensivas, exigem dedicação e profissionalismo. O choro do bebé é internacional e a acalmia no ombro da mãe enternecedor. A cultura é dispar, o amor é humano.
domingo, agosto 02, 2009
Não precisamos de maquilhagem, disse-nos. Aparentemente, a nossa pele bronzeada é bonita e não precisa de retoques. Sinto-me vaidosa e esqueço por instantes que o meu bronze é escasso.
A senhora senta-se imediatamente junto à janela e desabafa connosco, turistas, sobre o comboio. Queria um lugar privado e calhou um couper, queria janela e o seu lugar era junto ao corredor. Há dezenas de anos que faz esta viagem e nunca lhe tinha acontecido. Mete conversa.
Pergunta-nos o país de origem. Com a resposta, exclama "Barcelona!" e a revolta interior controla-se para explicar melhor a diferença. Exclama "Lisboa!" e o nosso coração sossega. A senhora de olhos azuis transparentes e cabelo branco cuidadosamente armado é de Viena. Era a peça que nos faltava, a piece de resistance na exploração de uma cidade: o indivíduo que lhe dá vida.
sábado, agosto 01, 2009
Não nos prendemos, exploramos. Os braços ezpandem e enrolam-se com outros curiosos.
Não vamos a Viena sozinhos. Cruzamo-nos com outros como nós, tropeçamos no seu destino e sorrimo-nos. A senhora termina a fotografia e diz-nos "Boa Tarde" e o mundo encolhe um pouco mais. O jovem pede-nos uma fotografia e logo se dirige em brasileiro, agradecendo a qualidade do desempenho comparativamente às más prestações de outros a quem pedira o mesmo. Para reservar alguns trocos para outras descobertas, depositam-nos num quarto intercontinental. O povo irmão das Américas saúda-nos e acompanha-nos nas ruas de Viena. A pianista, famosa nas suas terras nipónicas, esforça o inglês para nos falar de sushi. Estamos as quatro sentadas num banco do metro e três continentes diferentes esperam pelo mesmo comboio.