segunda-feira, julho 19, 2004

Aqui
 
Sentaram-se as duas na cama da Clara.
Com os olhos esquecidos na ponta dos dedos dos pés, Lucia segredou:
– Sabes, Clara, se não fosses tu... eu sozinha não teria a coragem de lutar de novo.
Levantou os olhos e prendeu-os aos dela. Sorriu.
– Ele voltou ontem à noite. Disse que estava com pressa, que vinha deixar-me só uns papéis, sem importância, mas lá o convenci a sentar-se para um café. Não tive medo, Clara, olhei o Pedro nos olhos, amarrei-o bem ao meu olhar e depois disse-lhe tudo o que tinha para dizer. Não me recordo das palavras exactas mas lembro-me dos sentimentos.
Clara juntou-se ao sorriso da sua amiga.
– Ele não fugiu, não podia, e, cá para mim, gostava de estar assim preso, também ele queria voltar. Não somos nada, nada mesmo, sem o outro. – Lucia leva o seu olhar de volta para os pés. – Custou entender isso, tivemos de voltar a ser nada para compreender o desejo de sermos, juntos, tudo... Regressámos. Fizemos amor. E sentimo-nos um só, novamente. Estamos completos agora. Para sempre, creio.
Clara admirava as palavras que ouvia. Adorava finais felizes. E aqueles sorrisos que se escondem de mansinho por entre a sinceridade dos sentimentos cativavam-na. Estava tão absorta na sua admiração que não evitou um susto quando Lucia levantou a voz e mudou de discurso.
– Ah, que lamechices que para aqui digo! Não te queria aborrecer, Clara, só queria agradecer-te por todo o apoio que me deste, a sério, és fantástica! – Lucia agarra a mão de Clara e sorriem exageradamente uma para a outra.
– Oh, não aborreces nada!, já sabes que adoro ouvir-te falar assim tão feliz. Fico muito contente por ti, por vocês os dois, e, já sabes, se precisares de alguma coisa estou sempre aqui. – E pousou a outra mão sobre as outras já abraçadas.
– Eu sei, eu sei. – respondeu Lucia, inclinando delicadamente a cabeça. -  Então e tu? Como vão as coisas com o Luís?
Sem querer revelar-se, Clara segurou forte o seu sorriso mas entristeceu-o.
– Vão bem... Partiu na terça para Inglaterra, vê lá tu. É pena é o seu trabalho roubá-lo tantas vezes de mim. – riu forçadamente – Mas ele é muito afectuoso, manda-me sempre lembranças e cartas com palavras tão doces que me fazem engordar. – riu-se novamente – É sempre uma festa quando falamos ao telefone, e agora com as novas modernices, torna-se mais divertido, com internet e isso.
Lucia não se tinha rido. Limitava-se a sorrir-lhe penosamente, como ela lhe pedia em silêncio.
– Mas custa-te... ou não?!
– Claro que custa, mas torna-se mais fácil de suportar com todas estas novas tecnologias, a sério. Ainda não te mostrei o novo telemóvel que ele me ofereceu, pois não?
Clara desesperava por um sinal de entusiasmo por parte de Lucia. Não encontrou. Lucia sorria-lhe com o mesmo sorriso, testando-a, rasgando a sua expressão para libertar Clara de si própria. Esta, percebendo, que não conseguia segurar por muito mais tempo o seu sorriso, agitou o olhar, que fugiu para o tapete, para a porta, para os olhos de Lucia e, rapidamente, de volta para o tapete. Lucia fixava-a.
– Passo optimos momentos quando estamos juntos. Amo-o muito. E ele também me ama, tenho a certeza... Talvez até nos saibam melhor esses momentos estando separados algum tempo, aproveitamos mais, sabes?... E mesmo quando não está cá, eu saio com amigos e amigas, divirto-me muito. Nunca perco este meu sorriso. – E, apesar de tremer por dentro, olhou nos olhos da sua amiga e sorriu-lhe com muita força.
Finalmente, Lucia devolveu-lhe o sorriso.
– És feliz, então.
O olhar cai.
– Penso que sim...
Lucia viu aqui o fim da conversa. Admirava toda a força mostrada por Clara e preparava-se para se levantar, ondular até à porta da rua, vestir o seu casaco castanho, abraçar futilmente a sua querida amiga, despedir-se e abandoná-la.
– Mesmo que, às vezes, me sinta sozinha cá em casa... Muito sozinha, aliás.
Lucia surpreendeu-se. Não esperava aquelas palavras. Clara sempre foi forte, nunca se mostrava triste ou abatida. E, agora, depois de anos de amizade, pela primeira vez, encontrava-se sentada na sua cama, com os pés suspensos e nervosos, as mão enleadas e irrequietas, e um olhar de criança triste a quem roubam uma brincadeira. Lucia, por momentos, não soube o que fazer.
– À noite, quando me deito, geralmente não consigo dormir. Tenho frio. E o silêncio torna-se insuportável. E, estupidamente, acredito que alguém ainda me vai telefonar e fazer-me companhia durante as horas. Mas já é tarde. E, nem eu tenho coragem de incomodar, nem ninguém ainda está acordado. E só consigo adormecer assim, à espera.
Clara levanta-se repentinamente e levanta a cabeça, olhando o infinito.
– E, sim, é optimo ouvir o Luis ao telefone, rimo-nos, vêmo-nos, apesar de tudo, estamos próximos. Mas quando desligamos... – Lucia, timidamente, levanta-se também – É como se toda a minha alegria e felicidade estivessem do outro lado da linha. Só fico com a Solidão e a Lágrima. E o Silêncio, claro, a esse até lhe sinto o cheiro a podre e velho. Que vergonha...
Lucia entrou em pânico. Não sabia o que fazer. Clara, para si, era a amiga em quem podia contar, a pessoa que estava lá por ela, o seu apoio, a mão no seu ombro, na sua face, secando as suas lágrimas e amarguras. Não a julgava capaz de sofrer, ela sempre fora forte para si e para os outros. Não sabia ajudá-la. Nunca o tinha feito e nunca julgara realmente possivel ser necessario a sua ajuda. Não sabia reagir. Limitava-se a olhá-la, ouvi-la e espantava-se.
Clara parou e olhou fixamente Lucia. Implorava-lhe atenção e compreensão. Tinha os olhos perdidos, cansados, vermelhos, delirantes. Lucia, a medo, pousou a sua mão no ombro de Clara.
– Não tenhas vergonha... Todos temos medo, todos estamos sós. E é a solidão que nos une... eu estou aqui, não tenhas medo...
Clara forçou um sorriso, não muito extenso, já não conseguiu mais. Agradeceu o apoio. As duas mulheres, agora desconhecidas, ficaram em silêncio por uns momentos, fingindo desconfiados sorrisos, desastrosos, inconvenientes.
Uma lágrima treme no olho de Clara. Esta aproxima-se mais de Lucia e beija-a nos lábios. Um beijo desesperado, calmo mas intenso. Lucia está petrificada. Lentamente, Clara afasta-se, olha no fundo de Lucia e, no meio do seu choro gemido, sussura-lhe:
– Conseguias amar-me como amas o Pedro?...
Lucia não conseguia responder. Estava assustada, perdida. Agora era ela que estava a segurar, era ela a coluna, o ombro, a mão, a força. E não podia quebrar. Ela não estava preparada para isto, tenha vindo apenas para lhe contar o sucedido da noite anterior e agradecer o seu apoio. Não sabia como reagir. Só sabia que não queria estar ali. Recuou um passo. Olhou Clara com pena.
– É melhor eu ir-me embora.
Esperou uma reacção qualquer, um simples “sim”, bastava um aceno, mas Clara continuava imóvel, surda, esperando, talvez ainda, a resposta à sua pergunta.
– Desculpa... – E recuando outro passo, viu Clara soltar-se de joelhos para o chão, pousando as mãos fracas nos joelhos, inclinando a cabeça e o olhar, e chorando passivamente, sem soluços, sem pressas.
Virou costas e, sem se deter, Lucia apressou-se para a porta da rua, arrancou o seu casaco castanho do bengaleiro e, sem olhar para trás, saiu e fechou a porta, levando consigo um lágrima teimosa.
Clara ouviu a porta fechar-se. Sorriu com a ironia. Sozinha novamente. Olha para a cama onde o Silêncio está sentado, fixando-a, rindo-se de sua cara. Ela levanta-se e, para grande espanto do Silêncio, senta-se ao seu colo, abraça-o e adormece ali, suspirando:

– Hoje fico por aqui.

quinta-feira, julho 01, 2004

Acho que afinal já não acredito no Peter Pan. Ele veio-me buscar no Sábado, voltei ao meu quarto lá na Terra do Nunca. Soube-me tão bem voltar a poder voar, a sonhar com aquele mundo em que não tenho regras para seguir.
Mas ontem à noite, esperei por ele outra vez. Sorri ao pensar que ele voltaria e levar-me-ia mais uma noite para longe. De repente, ouvi dois estalidos na persiana. Seria ele? E então, percebi, que já não era mais criança para acreditar num Peter Pan. Isto porque fiquei muito assustada, tive a certeza de que, se ouvisse alguma voz a chamar o meu nome, por mais jovial que fosse a voz, sentir-me-ia apavorada e correria até ao quarto dos meus pais, provavelmente, e pediria que fossem ao meu quarto ver o que se passava, ou, simplesmente, que falassem comigo para eu poder ouvir uma voz conhecida e de confiança.
E foi aí que percebi, para grande tristeza minha, que já não consigo acreditar no Peter Pan, ou no Pai Natal, ou no menino Jesus. Porque se me aparecesse um menino a voar no meu quarto, ou um velho de barbas na sala, ou uma voz desconhecida na minha cabeça, entraria em pânico e considerar-me-ia definitivamente doida.