terça-feira, junho 22, 2004

Não quero dormir sozinha hoje. Vou-me levantar e voar pelo corredor escuro até ao quarto de meus pais, vou empurrar devagarinho a porta e, sem eles se darem conta, vou-me deitar entre eles e já poderei dormir em paz.
Hoje tenho medo de dormir sozinha. Estou com medo de mim. Hoje não é só o medo dos monstrinhos debaixo da cama ou dentro do armário, não são só as sombras e os fantasmas que me assustam. Já não é só o Tempo que passa a noite sobre mim, rindo-se sobre a minha face, sinto-lhe o bafo velho, e que me vai puxando os cabelos e me incomoda a noite toda, troçando de mim e da minha fragilidade, cheirando-a e forçando-a. Já não é só o Frio que me puxa os cobertores que preciso de manter junto do meu corpo para não arrefecer, insistindo em controlar os meus dedos dos pés, os meus pés, as minhas canelas. Não é só a Solidão que me berra junto aos meus ouvidos o quanto faz parte de mim e o quanto custará para a esquecer, tornando-me cada vez mais surda para o Silêncio que antigamente me acalmava e que agora me rasga a face. Não são só estes espíritos que me incomodam esta noite. Hoje há mais, muito mais. Hoje tenho medo de mim. Tenho medo de não aguentar a noite toda sem me levantar, sem gritar, sem esbracejar e bofetear o ar que insiste em esconder todas aquelas Almas que troçam de mim a noite toda. Tenho medo de me tornar, finalmente doida e jamais voltar a dormir, jamais descansar novamente. Tenho medo de fazer mal a mim própria para tentar mostrar a todos os que estão presos no meu quarto que também eu sei magoar-me, que não necessito deles para me torturar. E que sei fazer pior que todos eles juntos. Tenho medo de os ultrapassar. Sinto que não tenho controlo sobre o meu corpo hoje e isso assusta-me de tal maneira que vou ter de sair deste quarto podre e abafado, em que o suor infesta todas as partículas que consumo, em que cada parede esconde um segredo embaraçoso, mortal, sair desta caverna e fugir para aquele quarto branco que nunca fechou as portas para mim.
Não sei porque deixei de lá ir. Quis vencer sozinha os meus fantasmas, quis acreditar que viveria e sobreviveria com eles, sozinha. Mas hoje não. Não consigo dormir sozinha hoje. Preciso de um quarto fresco. Os meus pais estão lá. De certeza que não se importarão. Pode ser que acordem durante a noite de um pesadelo tão pesado como os meus e, ao verem-me a dormir tão calmamente, tão segura, tão sorridente por estar entre aqueles em quem mais confio, talvez ao verem-me novamente muito pequenina, voltarão a sorrir, esquecerão o pesadelo e adormecerão novamente com o braço sobre o meu ombro, acariciando-me os sonhos.