sábado, janeiro 13, 2007

A Condição Sobre-Humana

Pedro sofre de uma condição terrível. Não sabe viver de outra forma e é uma pessoa triste por não ser como nós. Pedro não sente abraços por causa da sua condição. Não beija, não sabe como, não arrisca toques discretos nem se descai em tiques nervosos. Não tem qualquer sinal de espontaneidade. Não se sabe perder numa música ou num poema, Pedro não compreende a arte, não lhe encontra utilidade. Não vê cores para além das reais, não descobre áureas sobre a cabeça de ninguém. Não acredita em superstições, não usa amuletos, nem reza. Não sabe andar nas nuvens, ir à lua ou perder a cabeça. Não compreende os termos nem quem se vence por eles. Pedro é incapaz de enlouquecer, apesar de todas as limitações angustiantes que o atormentam, porque a sua própria condição o impede. Não sabe dançar e não sabe fingir. Pedro não se ri histericamente nem é capaz de disparatar para divertir os amigos. Pedro não tem amigos. Não compreende quem se enamora. Pedro não se enamora, falta-lhe a loucura (porque Pedro não enlouquece) e o esquecimento. Ele não esquece, sabe de cor cada palavra que disse e o que lhe responderam, cada pequena traição, cada descuido, cada hálito perceptível. Não consegue abstrair-se dos pequenos detalhes errados, especialmente dos seus. Uma palavra embrulhada na língua, um desequilíbrio ridículo, uma cor desencontrada na roupa, um cabelo teimoso, um espirro sonoro, um esforço inútil e embaraçoso por não ser nada disto, uma tentativa facilmente desmascarada de ser tão livre como os outros. Pedro não é livre, é prisioneiro dos seus planos e horários, que cumpre escrupulosamente, porque tem de ser, e não tem a capacidade de improvisar. Não consegue perder tempo. Todos os gestos são estudados e elaboradamente descritos e previstos muito antes de os executar. Pedro perdeu o instinto. Tem protocolos determinados para vestir, despir, abrir a porta, cumprimentar o vizinho, dormir. Mas Pedro adormece de coração pesado, escondido da noite por baixo dos lençóis. Até o sono chegar, Pedro afoga-se em vergonha, por todos os pormenores que falhou durante o dia, mas que apenas ele recordará de novo, e culpa, por ter cedido à sua debilitação e impotência para mudar. Viverá para sempre nesse estado estático e constante. Pedro sabe exactamente tudo o que é afectado em si por esta monstruosa condição e, por isso mesmo, padece mais, por saber o quanto é poderosa e impossível de eliminar. Uma vez atingido na sua totalidade, um indivíduo jamais se poderá libertar dela. Faz parte do processo ter noção de tudo isto, faz parte o martírio constante durante os momentos de solidão, que, aliás, se tornam mais comuns. Ninguém aceita gente como o Pedro, mudas porque não há nada para dizer, buracos bem fundos que recolhem tudo o que os rodeia mas jamais dão algo de volta. Não são iguais. Pedro está só e cada vez se isolará mais. Pedro possui uma terrível condição que o impede de viver entre nós, de viver como um de nós. Pedro está desesperado por ser quem é. Pedro não pode mudar. Pedro sofre de Consciência.