terça-feira, abril 26, 2005

"Mas o pior ainda estava para vir. Porque quando a doença da leitura toma conta do organismo, a tal ponto o debilita que o torna presa fácil desse outro flagelo que mora no tinteiro e supura na pena. O infeliz dedica-se à escrita."

"Quem esteja minimamente familiarizado com as agruras da composição não precisará que lhe contem a história em todos os seus promenores; como ele escrevia e achava bom o que escrevera; relia e achava execrável; corrigia e rasgava; cortava; acrescentava; ficava em êxtase; sucumbia ao desespero; passava noites excelentes e péssimas manhãs; agarrava uma ideia e deixava-a fugir; tinha uma nítida visão do seu livro, e a visão desvanecia-se; representava os papéis dos seus personagens enquanto comia; declamava-os enquanto passeava; ora vociferava, ora ria; hesitava entre este e aquele estilo; hoje preferia o heróico e o pomposo, amanhã o raso e simples; agora os vales de Tempe, mais logo os campos do Kent ou da Cornualha; e não conseguia decidir se era o mais divino dos génios se o maior tolo do mundo."

Orlando - Virginia Woolf

quinta-feira, abril 14, 2005

Ela aqui não me ouve. Mesmo assim, nunca me ouviria. Perdeu-se. Quando ela chegar (já não deve faltar muito) vou falar com ela. Vou dizer-lhe, sinceramente, "não acredito que aquela pessoa te seja uma boa companhia. Tornaste-te mais ausente, mais fechada. E, vê lá que eu nunca reparo nisto, mas tens os olhos de louca." Não sei como é que vai reagir. Não me interessa, também. Já estou preparada para desistir dela, esta será a minha última oportunidade. Custa-me vê-la assim. Estimo-a muito, temo por ela. Fica tão diferente depois de estar com aquela personagem. Vejo-as daqui. Sorrisos, olhares cumplices. O que terão escondido? Há qualquer coisa que não bate bem, sinto isso. Vem para aqui, minha amiga, eu protejo-te, dou-te tudo o que precisares para te afastares disso... Não consigo confiar.
Deu-lhe a mão e trá-la assim. "Quero mostrar-te uma coisa", parece dizer-lhe. Minha amiga, porque não me mostras antes a mim? Eu tentaria compreender a tua loucura. Lá vêm, na minha direcção. Da maneira como ela está de certeza que não repara em mim, vai passar e nem um sorriso de reconhecimento me vai deixar. Perdida. Traz um grande sorriso nos lábios. E a loucura da noite no olhar. Não a vi beber mas todo aquele brilho e aquele andar indeferenciado não é costume dela, bebeu, a sua companhia deu-lhe um copo, ou dois, ou mais. Mais próximas, ela à frente, olhando carinhosamente o chão e trazendo a outra pela mão, de sorriso pendurado. A outra sorri discretamente como guardando a verdadeira emoção para o lugar para onde ela a leva.
Minha amiga levantou o olhar. Viu-me. Continuou a sorrir, abrandou, aproximou-se de mim e parou. Não deixou de me fitar. Seria agora que lhe diria para largar a mão e dar antes a minha. A outra ali está, olha para mim, sorri, "Olá". Mas eu conheço-te e não consigo confiar em ti. Sabes o que é isto? Ela vai humilhar-me, é? Foste tu que a incentivaste? Deixa-a, não a posso perder, ela não se pode perder contigo. Não sabes o quanto me preocupo com ela quando está contigo. Não lês isto tudo nos meus olhos? É o que te quero dizer agora. Mas digo-o em silêncio.
Sinto-a a dar-me a mão. Olho, surpresa, para as nossas mãos. Minha amiga, o que se passa? Nunca me deste a mão...Olho-te nos olhos. Continuam brilhantes, mas felizes, e sorris-me. Devolvo o olhar para a outra. Só agora reparo que também ela está surpreendida, não sabe o que fazes. Devolvo-te o olhar e com ele te peço algo mais.
"Estou tão feliz... Vocês não sabem, mas eu amo-vos. Não é algo que consiga explicar convenientemente, apenas é. Porque eu não sou nada, não sou este corpo que aqui está, não sou estas palavras que ouvem, não sou nada disso. Isto, esta pessoa que aqui vêm que gosta de se afirmar como individualidade, não existe sem vocês. Vocês, minhas grandes amigas, vocês são eu. Porque, vou-vos confessar, quando estou sozinha não sei quem sou, não sei o que quero, não sei nada. Mas quando vos vejo, quando me sorriem, quando se riem das piadas infelizes que digo, quando não percebem o que vos digo e me pedem para repetir, quando me respondem, quando me olham, sei que existo. São vocês o espelho de mim. É através dos vossos olhos que me vejo. Dão-me vida, percebem? Amo-vos tanto... E todas estas pessoas aqui à nossa volta que dizem que me conhecem, sabem?, não são um décimo do que vocês as duas representam para mim. São vocês as duas, só vocês. Não dá para explicar porquê. Apenas amo os vossos defeitos, aquelas frases que não deviam ter dito, aquelas formas desajeitadas como comem ou espirram, aquela voz estridente que insistem em cantar, aqueles amúos cansativos, tudo o que me poderia irritar, cansar ou afastar milagrosamente fascina-me. Não sabem, nem vão saber, o quanto fico feliz por me deixarem conhecer-vos. Ah, porque me olham assim? Eu sei, não é fácil aceitar que isto seja assim dito. Mas é verdade. E por tudo isto queria pedir-vos uma coisa... Não me deixem fugir. Tenho medo de mim. Não sei como vai ser amanhã, como vou ser amanhã, ou depois, daqui a um mês, daqui a um ano... Tenho medo de me afastar de vocês. O tempo condena-nos a todos, somos diferentes a todos os momentos. Percebem? Amanhã posso acordar e arrepender-me de vos ter dito isto tudo, mas o que realmente importa, e eu preciso que compreendam isto bem, é que hoje, aqui, nesta hora, neste momento, eu, dentro deste corpo que vocês conhecem e para o qual olham dessa forma, eu sinto-me tão feliz por vos ter comigo e por ser quem sou, de tal forma que quero, hoje, aqui, agora, ser para sempre assim. E como vocês são eu, preciso muito que não me deixem. Preciso que daqui a um dia, um mês, um ano, uma década, se lembrem de mim aqui, hoje, agora, que se lembrem de todas as palavras que vos digo agora e que voltem para mim, mesmo que eu tenha fugido. Porque é o meu desejo. É isto que eu quero ser. E só tenho a certeza que o serei se vocês estiverem comigo. Não quero que me prometam, as palavras deixam-se de ouvir, quero que prometam a vocês, sim? Dentro de vocês, uma promessa não sai... É isto."
Sorriu-nos uma última vez. Olhou ternamente para mim, olhou ternamente para ela. Fechou os olhos e beijou-nos as mãos que não tinhamos solto durante um tempo suficiente para lhe distinguir uma lágrima no canto do olho. E, antes de podermos dizer alguma coisa, libertou as nossas mãos e fugiu a dançar para o meio da sala como louca. Muito louca. Como se estivesse só. Gritando com tanta força a letra da música que tocava, de olhos fechados, rodopiando sobre si própria, deixando-se invadir pela música. As mãos não pareciam dela, dançavam sozinhas junto àquele corpo. Uma visão estonteante.
Lentamente, procurei recuperar daquele momento. A amiga dela deveria estar ali também ainda. Sim, vi-a a meu lado, de braços estendidos, como eu, admirando-a. Percebeu que eu a olhava e olhou-me de volta. Cúmplices de algo que nunca julguei ser possível, nós, ligadas. Abraçámo-nos... Não sei explicar, não consigo pensar... Estava simplesmente certo. Abraçámo-nos... E, assim, chorei no ombro dela. Não sei porquê... E ela no meu...
Tenho de ir ter com a minha grande amiga. Caiu no chão, está sozinha, aninhada em si, choramingando de sono.

domingo, abril 03, 2005

Não estou bem. Sei que preciso de escrever, sei que posso escrever algo bonito neste momento, sinto-o a rebolar dentro de mim. Mas, novamente, não sei onde pegar, não sei como organizar as palavras. Pode até não ser credível, mas sinto mesmo como um riacho que se vai estreitando e termina aqui neste papel. Sinto-o a percorrer o meu braço, sinto mesmo, sinto-o escorrer com a agressividade que este lápis tem para este papel, sinto-o a caminhar, arranhando-se, desde o cotovelo até à minha mão. Sinto-o especialmente no pulso que, desde que deixou de usar as pulseiras, está muito mais frágil e sensível - quem mais acredita que pulseiras tão finas e simples podem moldar-se tanto a um pulso, protegendo-o, quem mais sem ser eu?!- .
Mas não sei onde nasce este riacho. Quero esgotá-lo porque, por dentro, afoga-me. Não consigo respirar em condições, o peito está muito pesado e o sentimento de afogamento não se alivia com esta escrita. Odeio quando isto me acontece, não sei mais o que fazer para relaxar. Posso ficar assim dias e até semanas. Esperemos que não seja o caso.
É que... de que serve querer ser poeta, de que vale ter as palavras se não encontro nada de novo para dizer? Não digo nada, não, não mudo nada. Só queria ser feliz. Só queria significar alguma coisa e acreditar nisso. De que me vale este texto se não para me voltarem a acusar de dispersão de objectivos realmente significativos? Vão fazê-lo, bem sei. Mas, senti-o no peito enquanto escrevi esta ultima pergunta, nada para mim faz mais sentido do que escrever. Entristece-me imenso o facto de ficar meses sem escrever nada para ninguém (escrevo para mim, mas é outro afluente que corre com menos força). Queria tanto escrever-vos para que sentissem tudo o que sinto.

Uma página e continua vazia...

É agoniante ver a lapiseira pousada, imóvel, sobre a folha...