quarta-feira, dezembro 23, 2015

BCN #75

Último dia antes do regresso a casa para as festividades. Os pacientes já o sabem e um, em particular, relembra-o com maior significado. Com a hipertímia em ebulição no seu corpo, procura-me, pergunta-me como me pode encontrar em Portugal. Pede-me nomes de bares, "basta chegar lá e perguntar por ti?". Promete que, quando sair, me irá visitar no meu país. Pede mais um abraço.
A especialista também não esquece que será o meu último dia na sua equipa. "Te encharé de menos", diz-me, na expressão espanhola que mais se aproxima às saudades portuguesas. Anima-me o carinho, apesar de saber que a falta que sentirá poderá ter mais que ver com o trabalho de que a vou aliviando nestes dias. Mas é Natal, há que pensar no carinho.

terça-feira, dezembro 22, 2015

BCN #74

Desde que aqui cheguei que está internado, já lá vai mais de um mês. Vemo-nos todos os dias, conversamos todos os dias. Comigo já chorou, já riu, já se zangou, já pediu perdão. Hoje está particularmente agitado. Apesar de já ter sido observado por outro médico e já ser o final da jornada, entendo que não deveria prescindir da conversa diária. Chama-me, inquieto, entusiasmado. Vamos para junto da janela, propõe. Não faz parte do protocolo da observação clínica, mas pouco importa neste momento. Aceito. Prepara ambas as cadeiras, viradas para a imensa janela que abre a vista para a imensidão da cidade de Barcelona. Está um dia bonito, solarengo, céu limpo, o mar azul ao fundo. Sentámo-nos. Relembra o tempo todo que passou desde que está internado, já lá vão muitos meses. E está um dia tão bonito lá fora e eu aqui, diz. Não minimizo. Bem sabemos que tanto tempo aqui também faz estragos ao humor de qualquer pessoa. Mas, enfim, há que entender o porquê de tanto tempo, ninguém tem especial prazer em mantê-lo internado, mas a gravidade da situação assim o exige. E pelo menos daqui temos uma vista impossível de apreciar ali de baixo, junto aos carros, escondidos entre os edifícios altos que nos limitam a vista. Por hoje, então, apreciaremos a vista e aguardaremos por dias melhores. 

segunda-feira, dezembro 21, 2015

BCN #73

Preparo-me para as festividades e procuro as últimas prendas para os que mais estimo. E nada como ir para o maior e mais conhecido centro comercial da cidade. Procuro os paladares catalães desta época natalícia para partilhar daqui a uns dias em terras sadinas. Escolho alguns torrões e provo-os, delicio-me com o seu sabor a casa. Procuro fuet, um enchido para qualquer altura do ano, e catanies, bombons de amêndoa e chocolate que me recomendaram entusiasticamente. 
Não abdico de embrulhar cada prenda. É um momento especial para mim, mesmo sabendo que o papel será desfeito e ignorado rapidamente. Mas faz parte do presente, aquele momento em que me concentro apenas em prepará-la, dobrando e colando cuidadosamente cada canto, enquanto me recordo da pessoa a quem quero mostrar o meu carinho. Preparo os laços e já está. Estou preparada para o Natal.

domingo, dezembro 20, 2015

BCN #72

Se houvesse dúvidas, hoje tirei as teimas: estamos na época natalícia. Ouvir um coro de crianças cantar músicas de Natal numa igreja torna inevitável sentirmo-nos dentro do espírito. 
Aceitei o convite da A., que o colocou um pouco apreensiva, com pouca fé no meu genuíno interesse. Mas claro que sim, que iria ouvi-la cantar. E assim o fiz. Pela manhã de domingo, saí em direção ao bairro gótico, em busca de mais uma igreja gótica numa praça escondida entre ruas estreitas. Se tivesse dúvidas, o facto de ver uma fila de pais e avós esclareceria-me que era ali mesmo. E lá dentro apreciei o amor familiar, os acenos, as filmagens, os sorrisos. Abrem as hostes os mais pequeninos, relativamente afinados, mas certamente empenhados. A idade dos cantores vai crescendo, juntam-se diversos grupos etários e terminam todos juntos, crianças pequenas, intermédias, adolescentes e adultos. Cantam uma música alegre e festiva para a despedida. E para terminar em grande apoteose, a maestra ensina ao público como cantar o refrão e todos juntos naquela igreja celebramos o facto de estarmos juntos nesta época natalícia. Glo-ri-aaaa, lalala...

quinta-feira, dezembro 03, 2015

BCN #55

Estar fora é também ser lembrada por quem ficou dentro. É chegar a casa e ter uma encomenda sobre a mesa endereçada a mim. Um nome amigo repousa no canto superior esquerdo do envelope almofadado. Não te vejo há muito tempo, B., mas estamos presentes na memória e coração um do outro. Abro e encontro um livro. Sorrio. Há muitos anos que me falara deste livro pela primeira vez e desde então que fiquei com vontade de o explorar. E agora aqui está ele, com umas palavras escritas que celebram o meu aniversário e a nossa amizade. Leio o livro com carinho e reconheço o bem que foi escolhido. Um autor português que escreve com poesia a ciência que pratica. Um pouco de nós os dois, será B.? Que bom.

segunda-feira, novembro 30, 2015

BCN #52

A aventura é também feita de distância. O tempo não pára à nossa espera, os lugares caminham à mesma velocidade, o tempo transforma na mesma medida. E assim as relações se constroem, se maturam, evolvem. Mantenho as ligações pelos diversos meios que o desenvolvimento tecnológico me permite. Mas são pequenas linhas invisíveis que não podem transmitir tudo. Sinto-me perto, sinto-os perto, mas falta um toque. Um abraço. Um olhar. 

quinta-feira, novembro 26, 2015

BCN #51

Fui ao primeiro jantar de serviço desde que cá cheguei. Vem muita gente, internos, especialistas, enfermeiros, educadoras sociais, administrativas. Vem o chefe. Todos sorriem em conjunto. Parece-me que, de facto, as vozes espanholas são mais sonoras que as portuguesas (ou pelo menos as que eu conheço). Bebem-se uns copos, provam-se tapas. Explicam-me o que é cada prato e retiro deles a novidade do país onde estou e a proximidade do sabor lusitano. Como aquele choco frito, suficientemente tradicional para ser catalão, mas surpreendentemente evocativo da especialidade da minha cidade natal. Falam-me dos diferentes embutidos, como o fouet, e de como são feitos com os intestinos do porco. O empregado dispara os vários pratos disponíveis e escolho o único cujo nome consegui apanhar. Fala-se de dança, de cerveja, observa-se o flirt da ponta da mesa e avisa-se o T. para levantar os olhos do decote da P. Rimo-nos. Comemos e disfrutamos. Que bom fazer parte de uma equipa.

quarta-feira, novembro 25, 2015

BCN #50

Vivo numa casa de gente alegre. Sei que a A. está a chegar porque oiço a sua voz a cantarolar pelas escadas acima. Entra e prossegue, animada. Segue para a sala, pega na guitarra e junta música à festa. É já de noite, mas pouco importa. A felicidade é para ser vivida de peito cheio a qualquer hora.
E hoje sinto-me um pouco mais satisfeita. Empenhei-me na árdua tarefa de encontrar os sapatos perfeitos para uma ocasião formal que se aproxima. Sim, é árdua para quem não tolera muito bem este tipo de compras. Mas tinha que ser. Fui para a avenida que já conhecia por ter muitas sapatarias e fui pululando entre elas. Procurava o toque barcelonês dos sapatos que tenho visto por aqui. Elegante, algo andrógeno, uma reinvenção dos elementos masculinos subitamente apropriados (e bem!) pelo mundo feminino. Depois alguns experimentos encontrei. Estou satisfeita. Acho que me portei à altura. E, sim, é um ato que necessita ser festejado.

terça-feira, novembro 24, 2015

BCN #49

A empatia é uma característica empática para qualquer profissional de saúde. Mais ainda, creio eu, para quem trabalha em saúde mental. é o que nos permite conhecer melhor o outro, asim como sentir mais de perto o seu sofrimento. O que, por vezes, é duro para nós próprios. Porque somos humanos, feitos de emoções e relações. E há vezes em que o sofrimento do outro ressoa mais em nós.
Como hoje, quando uma mulher implora que lhe parem toda a medicação porque já não suporta mais a cefaleia crónica que tem há anos. Depois de uma nova tentativa de mudança de medicação, piorou e nem era para vir hoje, conta, que nem se consegue levantar da cama. O marido obrigou-a a vir, ele que também se encontra lacrimejante. A incapacidade provocada pela dor crónica espelha-se no seu sofrimento e no do marido. E eu quero ajudá-la. Quero que não sinta mais dor, que viva a vida que exige e que merece. Faço o meu melhor. Desejo-lhe as melhoras. Do fundo do coração.

segunda-feira, novembro 23, 2015

BCN #48

Assim não pode ser, disse-me. Sinto a pressão e a pressa. O doente não foi avisado, a família não foi avisada, o relatório não está pronto. Na sexta disse-me que se faria segunda de manhã e afinal hoje já não há tempo. A ambulância já está à espera. O que está feito está pobre. Falta isto e isto. Corro para que seja tudo mais rápido (imagino eu). Sei que é o teu primeiro relatório, mas não pode voltar a acontecer. Agora já sabes como é. Quero que invistas mais. Que te impliques mais. O próximo doente terá de ser como se fosse teu filho. 
Entendido. Não voltará a acontecer. Aqui vou trabalhar a sério. Finalmente.

domingo, novembro 22, 2015

BCN #47

Dia de despedidas. Não sem antes um brinde logo pela manhã com os respetivos cappucino, café com leite e chocolate quente.
À tarde haveria outra despedida. Sem pressas, aproveitamos o dia como se tivessemos o tempo todo do mundo. Como se tivessemos em nossa casa, para sempre. No sofá, vendo televisão. Cozinhando o almoço (as salsichas alemãs para partilharmos a experiência). Revendo as fotografias destes dias no computador. 
Assim, talvez, a despedida não seja tão difícil. Assim, talvez, só nos recordemos que nos veremos apenas daqui a umas boas semanas mesmo antes de sair de casa. Depois da mala feita e chave na porta. Talvez a vivência da tranquilidade caseira me deixe este sentimento bom prolongar-se um pouco mais.
Até breve.

sábado, novembro 21, 2015

BCN #46

Na casa Batlló respira-se Gaudi. Novamente, sem linhas retas, ondulações ergonómicas, incorporações naturais. O azul dos mosaicos ao longo do pátio interior vão clareando a sua cor para que, no final, com a luz do sol, tudo seja uniforme. Um cogumelo gigante onde se senta o casal apaixonado e o pau de cabeleira. A espiral do teto no salão. As cores, a escadaria, as madeiras e os vidros. E, há que notá-lo, um audio-guia que nos ajuda a entrar no espírito gaudiano.
Último jantar antes da partida. Mais tapas e pinchos, numa casa em que, da mesa onde estamos, vemos flamenco na televisão. Impressiona-me a intensidade com que se desenrolam as mãos e se fazem soar os pés. Há uma mística que, só depois de entender a música, se poderá dançá-la. 
Ainda tenho muito que apreender por aqui.

sexta-feira, novembro 20, 2015

BCN #45

Saio a correr do trabalho para reencontrá-las de novo. Regresso hoje ao miradouro onde estive  a semana passada, quero partilhar com elas a paisagem que me encantou. Tenho, quiçá, alguma dificuldade em guardar os pequenos prazeres só para mim, se me entusiasmam necessito partilhá-los com quem amo. Para que não seja apenas meu, para que não restrinja o outro de se entusiasmar como eu. E, por isso, subo com alegria a estrada íngreme por saber que valerá a pena. Apesar do olhar inocentemente ameaçador de quem sobe a custo. No fim, os sorrisos confirmam que valeu a pena.

quinta-feira, novembro 19, 2015

BCN #44

Fui a única médica do serviço. Assim, tudo segue à minha velocidade, ao meu gosto. Vou conhecer o novo paciente que, deitado qual deus grego na sua cama, me diz que sou boa pessoa porque o vê na cor dos meus olhos. 
Ao final da tarde junto-me aos amores que me vieram visitar a Barcelona. Junto ao Aquário, comemos uns crepes e bebemos chocolate quente. Rimo-nos. Não se sente a distância nem o tempo que nos separou. Não se distingue nenhuma timidez pelo primeiro encontro recente entre elas. Como uma amizade de sempre, ainda antes de o ser. 
Cumpriu hoje a promessa de nos entregar as prendas que nos trouxera da Alemanha. As salsichas de Munique, os chocolates, as gomas. E uma prenda para o meu aniversário. Uma camisola verde, com escritos em alemão. Uma camisola com muito significado. Fora a nossa primeira troca realizada há alguns anos, em nome da amizade que se criara, uma camisola verde por uma t-shirt colorida. Quando nos reencontrámos, anos mais tarde, repetiu-se o gesto. É mais que uma camisola. É o reafirmar de uma amizade sólida e bonita. 
Que bom ter este amor tão perto.

quarta-feira, novembro 18, 2015

BCN #43

À mesa estamos cinco pessoas. Provam-se tapas, bebe-se sangria, relaxa-se do dia longo, que agora se finaliza da melhor maneira. Sorrimos, falamos uma língua em comum, mas que não é a materna de nenhuma de nós. Há três nacionalidades diferentes à mesa, pelo que se escolhe o inglês internacional para comunicar. O sorriso, esse, é transversal. Ainda há pouco estavamos tão distantes. Uma velha amiga na Alemanha, a sua irmã na Roménia, um grande amor em Portugal e uma nova amiga na Catalunha. Não deixo de me maravilhar com as possibilidades do mundo em que vivo. Que bom ter tanto carinho aqui tão perto. Que bom poder matar tantas saudades de uma só vez. Um brinde!

terça-feira, novembro 17, 2015

BCN #42

Em casa voltamos a falar de literatura. Desta vez, é me proposto um novo género literário. A banda desenhada. A I. tem muitos exemplares que me põe no colo. Experimenta, diz-me, é outra forma de imaginário. Sugere-me inicialmente um livro sobre as sufragistas, tendo em conta a nossa conversa prévia sobre mulheres de luta (orgulho-me de lhe contar que a Dra. Beatriz Ângelo foi a primeira mulher do mundo a votar). Vai buscar outro livro, e outro, cada um com uma particularidade no seu desenho. Um deles, diz-me, é duro de ler. Lembro-me então do único livro de banda desenhada que tive curiosidade em ler. Não lhe sei o nome, sei apenas o tema. Enquanto medito sobre o mesmo, continua a sugerir-me exemplares da sua biblioteca. E Fua Jome, conheces? Não faço ideia... como se escreve? Preparo-me para pesquisar na internet o nome que me soletra quando mo entrega em mãos. Fun Home! Era precisamente este o livro! Será então, por aqui, que iniciarei o meu percurso em literatura de banda desenhada. 
Para além disso, não deixo de me divertir secretamente com o sotaque com que a generalidade dos espanhóis pronunciam as palavras em inglês... É toda uma nova língua.

segunda-feira, novembro 16, 2015

BCN #41

Chego a casa e quero descansar um pouco. Sento-me no sofá e ligo a televisão.
Não é muito diferente da nossa. A esta hora dominam os concursos televisivos, os talk shows e alguns noticiários. O zapping detém-se, então, num programa que acabara de começar. Duas equipas, perguntas de cultura geral de escolha múltipla. Cortam-se os fios da bomba correspondentes à respostas que se consideram erradas. Se se enganarem, a bomba explode os concorrentes ficam bem salpicados de tinta de várias cores.
Dei por mim entusiasmada com as perguntas. Até pulei quando perguntaram que país chegara primeiro à Malásia (Portugal!). Aprendi umas novas curiosidades e entendi algumas particularidades da televisão espanhola. Ao contrário da portuguesa, em que os beijinhos vão para quem nos vê em Angola ou em França, aqui vão para a Bolívia. Aqui não se fala de Toni Carreira, aqui é Júlio Iglesias que serve de mote para uma conversa animada sobre gostos musicais.

domingo, novembro 15, 2015

BCN #40

Depois do passeio, o descanso. Porém, viver numa cidade estrangeira, não sendo uma residência permanente, dá-me a sensação de ser uma turista privilegiada, com tempo para ver tudo. E, portanto, um domingo em reclusão gera inquietação no meu corpo, que me diz que o meu tempo não está a ser bem aproveitado.
Saio, portanto. Depois de procurar algum programa nas imensas sugestões que encontro online, sigo para um mercado dito alternativo aqui por perto, no bairro da Gràcia. Lá o encontrei, depois de um desvio involuntário. O ambiente era, de facto, alternativo. Algures entre o nosso Príncipe Real e a Bica. Porém, também demasiado alternativo para a minha bolsa. Depois de visitar todas as banquinhas, apreceei a originalidade e compreendi que não seria ainda hoje que iniciaria as minhas compras de Natal. Fiz o melhor que pude para terminar o dia. Regressei a casa e fiz uma bela sopa. Porque, confirma-se, é definitivamente uma boa aposta - nutricional e anímica.
Já entendi. Para me sentir mais em casa, faço uma sopa. Depois do desastre da semana passada, decidi voltar a tentar. Fui comprar os vegetais que conheço bem para tentar recuperar a minha pequena credibilidade como cozinheira. Descasquei, cortei, fervi, temperei, triturei. Depois da base feita, adicionei o feijão verde cortado à boa maneira portuguesa. Deixei ferver um pouco mais e dei-me por satisfeita.
Convidei, então, a minha colega de casa a provar comigo. Prometi que estaria muito melhor que a anterior (que, como único elogio, foi apelidada de "saudável"). Observou o resultado final e perguntou porque não triturara tudo. É assim mesmo, são as nossas sopas. Provou e aprovou. Soube-lhe tão bem quanto a mim. Perguntei-lhe, confessa lá, depois da sopa anterior não acreditavas que pudesse fazer outra tão boa... De facto, não. Pois, eu também não... Mas folgo em saber que sou capaz.
Aos poucos vou entendendo o prazer de cozinhar algo saboroso.

sábado, novembro 14, 2015

BCN #39

Junta-se um grupo lusitano e seguimos para o topo da cidade, para o monte que sobressai cá de baixo da cidade por ter uma igreja que nos mira.
Faz um pouco mais de frio em Tibidabo. Porém, isso não impede que tanta criança se entusiasme com o parque de diversões que por lá existe. Depois de apreciar as duas igrejas, uma construída por cima de outra, decidimos aproveitar também o parque. 
Há que aproveitar as alturas e a vista imensa sobre a cidade de Barcelona. Para isso, nada como colocar uma roda gigante junto ao penhasco. E é por aí que começamos, mesmo que algumas precisem de se agarrar com mais força à coluna central do cesto onde subimos na roda. O dia está limpo e a vista é fenomenal.
Depois de absorver estas imagens, seguimos para as diversões adrenérgicas. Recordo-me do parque de diversões onde crescia todos os verões, recordo os anos que passaram a desejar chegar ao metro e quarenta para poder entrar em algumas diversões, recordo o entusiasmo com algumas delas. Porém, o corpo não as recordava tão bem. O barco dos piratas e a montanha russa fazem-no sentir uns sustos a que não está habituado. Não entendo, portanto, a seriedade no rosto da criança sentada à minha frente que demonstra um tédio imenso por uma atividade que me deixa o estômago a pairar no abdómen.
Porém, reconheço. É bom sentir coisas diferentes de vez em quando.

sexta-feira, novembro 13, 2015

BCN #38

Saí depressa para que ainda apanhasse o sol por cima dos montes. Avisaram-me que a vista era imperdível e decidira que seria hoje que o iria comprovar. O caminho não é óbvio, socorri-me das aplicações virtuais que nos dão as direções que necessitamos. Uma coisa era certa: sempre para cima.
Por entre as bairros e moradores insuspeitos, sigo no autocarro até ao ponto mais alto, agora o resto faz-se a pé. Por aquela estrada entre as árvores, dizem-me. Sigo, então, para, pouco depois, quando as pernas preguiçosas já acusam algum cansaço e paro para olhar em redor, me surpreender imediatamente com a vista. Vejo tudo. Ou quase. Vejo a imponência da Sagrada Família, que de perto não se absorve inteira. Vejo as duas torres altas que avisam que o mar está perto. Vejo a Catedral que sobressai de um emaranhado de ruas. Estas que contrastam com a Eixample rectilínea, avenidas irrepreensivelmente direitas de aqui até ao mar. E ao fundo, o mar. O meu verdadeiro norte.
Entusiasmo-me com o que será quando chegar efetivamente aos bunkers. Vejo-os e aos seus habitantes jovens, de cerveja e selfie stick na mão. Apresso-me, contenho-me para não para sempre que um pouco mais de paisagem me é disponibilizada, e procuro o ponto mais alto e mais panoramico.
Parei ali. Sobre um pequeno muro onde vejo tudo em redor. à minha frente, o mar. À direita, Montjüic, com o seu castelo. O Museu d'Art da Catalunya e ainda o Palau Real. Continuo e vejo já, para trás, Tibidabo lá no topo. Vejo o meu hospital delimitando o fim do império do betão da cidade. Vejo a largura das ramblas de Carmel, estas agora mais perto que as dos turistas. Quase a terminar a volta, junto ao mar vejo ainda, à esquerda, as três enormes e misteriosas chaminés.
O céu fica mais quente, as cores mudam, e vou atrás do sol. Ali, juntam-se mais uns quantos jovens tirando as ultimas fotografias ao pôr-do-sol ou celebrando-o com mais um gole.
Deve ser, certamente, a visão mais bonita sobre esta cidade.

quinta-feira, novembro 12, 2015

BCN #37

Avaliamos a personalidade de um senhor que se encontra internado. Salienta-se a capacidade de se reduzir às suas doenças físicas. Como pode sair de casa se tem hérnias? Como pode fazer exercício se tem um alto no joelho? Como pode trabalhar se no emprego anterior carregou tantos pesos que o deixaram em mau estado? 
A entrevista é difícil pela renitência do próprio em procurar uma alternativa ao seu mal-estar. Comentamos entre nós à saída o posto patológico onde este homem se instalou. Comentou o Dr. E., como é curioso a transformação da doença num estatuto na sociedade atual. Dá que pensar.

quarta-feira, novembro 11, 2015

BCN #36

Quem é o interno que me quer fazer um favor?, perguntou a A., com o seu sorriso carinhoso de sempre. Precisava de um interno e não queria dizer para o que seria. O JF mostrou-se apreensivo e a A. não se demorou a dizer que seria eu, que me mostrei mais disponível e curiosa. Pois bem, assim seria.
E que sorte a minha. Calhou-me acompanhar a enfermeira A. e os pacientes do programa de redução de danos ao seu treino semanal de futebol. Uma saída de campo, com passeio de autocarro pelo topo da cidade, até ao campo ao ar livre, com vista para o mar, para todas as torres simbólicas da cidade e para o topo, Tibidabo. Sentada num banco, aprecio o jogo e aproveito o sol quente de São Martinho. Um privilégio, dizia-me a A., nem todos os internos têm a oportunidade de acompanhar esta atividade. Aqui onde os consumos se substituem por uma bola de futebol e os encontros são para partilhar desporto. Aqui onde, talvez, a noção de normalidade e potencialidade individual possam mudar um pouco. É verdade, sinto-me privilegiada. Que dia bonito para uma vida diferente.

terça-feira, novembro 10, 2015

BCN #35

Sou bem recebida aqui. Chego a casa e tenho sorrisos e perguntas sobre o dia que passei. Tenho quem se lembre do que prometeu e me vem mostrar os vídeos das suas aventuras musicais. Mostra-me as canções, conta-me as histórias, ri-se e sinto-me privilegiada por estarmos a partilhar tudo isto. A sonoridade que me montra lembra-me algumas canções portuguesas que me disponibilizo para lhe mostrar. E disponibilizo-me para encontrar outra música do meu país que a encante como a que já conhece. Gosto muito de fazer isto. De tentar conhecer uma pessoa ao ponto de conseguir sugerir-lhe uma música que lhe seja desconhecida e que a encante. É uma prenda magnífica. 
Não tive sorte. À medida que avançava nas opções, piorava a reação. Chegou a dizer-me, com um sorriso, "es horrible!". Que péssima performance da minha parte. Não desisto porém. Acabei de chegar a esta casa e a estas pessoas que me recebem com carinho. Tenho tempo para as descobrir e para chegar à sua canção. Lá chegarei.

segunda-feira, novembro 09, 2015

BCN #34

Desta vez a fila era mais curta. A notoriedade da oradora era também diferente, mas não deixou de encher a sala.Veio falar-nos de identidade. Afinal quem pertence ao "nós"? O que nos faz sentir que pertencemos a um nós? Poderemos pertencer a um grupo sem gostarmos assim tanto das outras pessoas que nos rodeiam nesse grupo? Poderemos ser diferentes dentro de um grupo?
Falou-se de política, de intervenção social, de como o objetivo não pode ser apenas legislativo, há muito para além disso. Falou-se de emigração, de refugiados, da inclusão, integração ou mera aceitação. Falou-se de identidade individual, que se constrói e reconstrói ao longo da vida.
Falou-nos com serenidade e com crítica, aceitando de bom grado comentários e perguntas. O público ouviu com atenção e opinou, quis saber mais, quis partilhar. 
Sinto estar numa cidade pensante. Que questiona e reflete. Que convida à reflexão conjunta. Estamos em tempos particulares de mudanças na sociedade e Barcelona está em cima do acontecimento. E, aqui, com Judith Butler, se comprova mais uma vez esta vivacidade criativa e reflexiva de quem habita a cidade.

quarta-feira, novembro 04, 2015

BCN #33

Sentamo-nos em círculo.Com a serenidade característica da abordagem psicodinâmica, pede-nos para nos apresentarmos. Somos todos curtos, breves e formais, pelo que, interpretando a nossa abordagem, nos pergunta se queremos continuar assim tão estruturados e seguir já para a análise do texto. Felizmente, o grupo não fora muito cumpridor e a maioria não lera o tal texto. Fala-se então, de forma livre, sobre o que é, para nós, um grupo e as suas dificuldades. Curioso, diz-nos, parece que me estão a descrever o grupo ideal que gostariam de ter, parece-me um bom ponto de partida. Aos pontos, percebemos que esta formação em terapia grupal é, por si só, um grupo, do qual já fazemos parte, no qual temos já o nosso papel, a nossa intervenção, a nossa interpretação. A presença ou a ausência, a participação ativa ou a observação passiva. Tudo isto faz parte da formação, que é um grupo.
A meu lado está o JF. Racional, objetivo, estudioso. Em silêncio. A certa altura a terapeuta pergunta-lhe se está confortável. Diz que sim, mas o corpo denuncia-o. Uma inquietação obriga-o a verificar repetidas vezes o tempo que falta para terminar. No fim saímos e diz-me, "não faço ideia do que estivemos a falar". Isto não é, definitivamente, a sua praia. Quanto a mim...

terça-feira, novembro 03, 2015

BCN #32

Tenho conhecido muita gente. Amigos de amigos. Hoje, mais uma vez, novas pessoas em casa. O jantar saiu bem à L., pelo que não resistiu a convidar dois amigos a virem prová-lo. Assim foi. Veio a sua amiga percursionista, que tocara na abertura do comício do outro dia, e um amigo enfermeiro emigrado na Alemanha. Fala-se novamente de política, comparam-se sistemas de saúde e características de caráter nacional. O petisco do jantar é partilhado, o vinho distribuído, e preparam-se para sair para a noite espanhola. Convidam-me. Agradeço muito, mas o meu dia amanhã será cansativo, tenho de me preparar para ele. Insistem, com um sorriso. Sinto-me realmente bem-vinda. E que bom que é conhecer gente nova, diferente, que nos enriquece. Que se dispõe a apresentar-nos a noite tardia espanhola. Outro dia, fica prometido.

BCN #49

A empatia é uma característica essencial para sermos bons profissionais de saúde. Em saúde mental, acredito, tem uma relevância ainda maior. O que, por um lado, nos leva a compreender mais profundamente os nossos pacientes, por outro, o seu sofrimento pode entrar por nós adentro e torna-se difícil não o sentir em uníssono. Somos humanos, somos feitos de emoções e relações. E há coisas que não nos passam ao lado. E emocionamo-nos.
Como quando uma senhora pede desesperadamente para parar toda a medicação porque não suporta mais a cefaleia crónica que tem há anos e que, depois de mais uma tentativa de mudança de medicação, piorou. Nem era para vir, disse-me, nem consegue sair da cama, veio porque o marido a convenceu. O marido tem os olhos igualmente lacrimejantes. Sente-se o sofrimento incapacitante desta mulher e de como isso se reflete no seu marido. E eu quero ajudar, quero que a dor passe, quero que consiga sair de casa e viver a vida que reclama. E a que tem direito. Faço o melhor que posso e desejo-lhe as melhoras. Do fundo do coração.

segunda-feira, novembro 02, 2015

BCN #31

Encontrava-me entre as duas, que conversavam entre elas. Acompanhava sem grande esforço a conversa até que deixei de o conseguir fazer. Castelhano, catalão. Mudam sem darem conta, com uma facilidade que me impressiona. Interrompo para o comentar. Riem-se. Realmente, não têm muita noção de quando mudam. Que depende da pessoa com quem falam, do contexto, até do tema. A E. conta-me que, apesar de não ser catalã, vive com o marido há muitos anos na Catalunya, de tal forma que, quando os filhos nasceram, falava com eles em catalão e com o marido em castelhano. Quando chegaram à adolescência as duas linguas já se misturavam, mas ainda hoje, quando fala ao telefone com os filhos, falam sempre em catalão. Não sabe bem porquê, mas assim é. A P. sorria, confirmou-o e comentou que sempre que a E. lhe fala da sua família ou de algum tema relacionado, muda automaticamente para catalão. Curioso como o coração escolhe a sua língua.

domingo, novembro 01, 2015

BCN #30

Fui visitar a história subterrânea de Barcelona. No Museu d'Història de Barcelona mergulhamos pelo passado desta cidade em camadas de rochas que nos contam o que aqui aconteceu. A uns determinados metros de profundidade, os romanos tingiam a sua roupa nos tanques claramente identificados, salgavam o peixe nos vasos que ali se mantêm e produziam vinho que seguia nos carreiros que passam por baixo dos nossos pés. Uns centímetros acima, distingue-se já uma igreja com as respetivas divisórias, inclusivamente o local para o batismo, onde se banhavam numa pia quadrada. Se olharmos agora para cima, vemos os tetos visigodos e surpreendemo-nos com quanto podemos aprender em alguns metros de profundidade.
É dia de Todos os Santos e quero cumprir a tradição catalã. Compro castanhas assadas e boniato, uma batata doce um pouco mais laranja que a portuguesa. Assim, aconchegada, termino o meu dia.

sábado, outubro 31, 2015

BCN #29

Elas de olhos fechados, com o peito junto ao deles. Atentam ao corpo masculino, que comanda o delas suave e discretamente. Atentas aos gestos, sabem quando e onde colocar os pés, cruzar a perna, rodopiar, abrandar e acelerar. Com a ponta do pé, eles travam o delas, dizendo para descansar, sentir a música e aguardar pelo movimento seguinte. Elas, neste repouso libertam a mão que repousava sobre as costas do homem e deixam-na pairar elegantemente até regressar de novo ao seu ninho. Eles, com tranquilidade, dão o mote para seguir o passo. Ao som das guitarras e da voz castelhana, circulam pelo salão do Museu Nacional d'Art da Catalunya. São pares de várias idades, tamanhos e feitios, casuais e inesperados. Há inclusivamente um par de mulheres. A sua presença ali surpreende e transcende a experiência no museu como uma exposição temporária imprescindível. Tango argentino em casa espanhola.

sexta-feira, outubro 30, 2015

BCN #28

Amanhã celebra-se a castañada. Em vésperas do dia de Todos os Santos, comem-se castanhas, boniatos (batata doce) e panellets (bolinhos de maçapão tradicionais desta zona e desta época festiva). 
Também no serviço se celebra a festividade. Os utentes prepararam os petiscos para a equipa provar. Não perco a oportunidade de me sentir um pouco mais catalã e provo os panellets: coco, pinhão e chocolate, foram as minhas escolhas.
Levei castanhas para comer durante o passeio da tarde, que hoje saí cedo e o tempo exigia que se aproveitem dele. Decidi subir Montjuïc, que o ambiente pedia uma vista bonita sobre a cidade. Subi a pé pelos jardins, entretida com as famílias que brincam e os cães que correm. Entrei no castelo, ouvi portugueses comentarem a imensidão do porto que de ali se observava, vi o mar, que tanto me tranquiliza, e procurei um banco com boa vista onde comer as minhas castanhas. 
O banco vazio que escolhi não tinha a melhor vista, então decidi fazer companhia ao jovem que comia clementinas no melhor banco para apreciar a paisagem. Ele espreitou o que eu comia, expliquei-lhe que está na altura de comer castanhas e ofereci. Ele aceitou e ofereceu-me uma clementina de volta. Conversámos. Este jovem coreano, que pouco de inglês era capaz de falar, estava de viagem pela Europa, tendo já passado pelo meu país, que muito o encantou. Trocamos nomes, idades, profissões. Fazemo-nos companhia e trocamos ideias sobre os nossos países e este que visitamos. Convidou-me para ir ver o espetáculo da fonte de Montjuïc. Fomos e aproveitámos o resto do serão, trocando as palavras possíveis numa língua que ele pouco dominava e que eu tentava simplificar para me fazer entender. Surpreendo-me sempre com a possibilidade de encontro entre duas pessoas tão longínquas.

quinta-feira, outubro 29, 2015

BCN #27

Sinto-me só. Há dias piores que outros e hoje o dia é mais difícil.
Já passou quase um mês. Sinto já falta das minhas pessoas, das que entendem o que digo e o que deixo por dizer, que me abraçam e aquecem. Por outro lado, aqui ainda só passou um mês. As pessoas recebem bem, sorriem, integram, mas não são ainda minhas pessoas. Ainda não as vou abraçar. Estou entre dois países, um pé em cada um, tentando equilibrar-me na distância entre os dois apoios. Se sinto um pé fugir-me antes do outro assentar, o receio de cair exacerba-se. Hoje estou aqui, em desequilíbrio. Amanhã, espero, estarei um pouco mais segura.

quarta-feira, outubro 28, 2015

BCN #26

Aqui, és quem tu quiseres.
No metro, um rapaz de vinte e poucos anos salienta-se dos restantes passageiros. Sobressai o seu cabelo comprido, branco pela descoloração agressiva sobre um cabelo negro ainda nas pontas, que cai como uma cortina sobre o caderno apoiado sobre o joelho rasgado na indumentária escura. Concentrado no seu desenho, levanta intermitentemente o olhar para confirmar as linhas da carruagem. Observa a carruagem, não quem a habita.
Na estação seguinte entre um grupo de jovens, com roupas tão duras como as deste que nem os vê. Elas arriscam um pouco de cor, mas o rapaz que as acompanha mantém a monocromia. Alto, curvado para caber no círculo de amizade ali criado, mostra o seu sorriso desalinhado. De dentro da sweat escura saem umas mãos compridas, brancas, magras, como a sua face. Contrasta-se. A fragilidade do corpo protege-se com a afirmação da roupa que o veste.

terça-feira, outubro 27, 2015

BCN #25

A presença de cães diz muito sobre uma cidade. Por exemplo, em Paris, são todos muito pequeninos, como as pequenas casas onde os seus donos habitam no centro da cidade. Aqui em Barcelona, imagino as casas maiores (as que conheço até agora, são realmente mais espaçosas que as parisienses que visitei) para estes cães sorridentes de grande porte.
Barcelona passeia muito os seus cães. Fazem companhia junto aos donos enquanto bebem uma caña numa esplanada qualquer. Acompanham a trote a velocidade da bicicleta onde segue o dono. Recebem beijinhos na cabeça quando, pequeninos, vão ao colo da dona. Por vezes até passeiam aos pares e correm mais alegres. Vão fazendo as suas necessidades pela rua,apesar de não se encontrar nenhum dejeto canino onde tropeçar.
Por vezes entram momentaneamente nos estabelecimentos comerciais, mas, caso não seja possível, Barcelona também se preparou para essas circunstâncias. Uns pequenos bengaleiros à porta de algumas lojas avisam que o seu animal pode esperar ali. E ele espera. Por vezes um pouco mais impaciente. Como o Simba. Assim que viu a dona na fila da caixa, já quase quase de novo ao pé dele, ladra-lhe. Então, Simba, que se passa para hoje estares assim?, pergunta a senhora da caixa. O Simba, com os seus olhos meigos entre o pêlo comprido preto, com o seu grande corpo algo inclinado para ver melhor a dona, ignora a pergunta e repete o latido. Oh, Simba, já vou, tem calma, responde-lhe a dona. É assim, já me viu, pronto, agora não se cala... Auf!

segunda-feira, outubro 26, 2015

BCN #24

Um dia inteiro à espera que alguma coisa aconteça para que o mais interessante do dia tenha sido o estender da roupa.
Ainda não entendi o tempo de Barcelona. Ando atenta ao boletim meteorológico do meu dispositivo móvel, que deixa sempre para amanhã o inicio da chuva. De facto, apesar de avisar que nos próximos dias irá chover, no próprio dia muda de ideias: afinal ainda não será hoje, afinal até faz calor, chuva agora só daqui a dois dias.
Hoje foi o dia em que a previsão de aguaceiros se manteve mas que, ao longo do tempo, não a vi concretizar-se. Confiante de que, mais uma vez, é p'ra amanhã, fui estender a roupa. Satisfeita com a lide doméstica, vim desfrutar do meu serão para junto das pessoas que se aproximam através deste ecrã. Que bom é sentir-vos tão perto. Que bom sentir-me bem em casa, em boa companhia, confortável, a ouvir a chuva lá fora... Espera... Ala, que se faz tarde, chove a potes e ainda agora acabei de estender a roupa! 
E amanhã, levo botas?

domingo, outubro 25, 2015

BCN #23

Entra uma banda de percussão que dá o ritmo inicial. Ali, numa antiga estação de comboios, entretanto transformada em polidesportivo, vai dar-se início à campanha eleitoral para as eleições de 20 de dezembro. No cartaz que enquadra o palco lê-se "el canvi no s'atura", não se pode parar a mudança. Ali se junta a esquerda alternativa, que, alguns meses antes, se coligou em nome de uma nova Barcelona e conseguiu a vitória. O início do início, lembrou o primeiro orador, antes de ser bem aplaudido. 
Das cinco personalidades que se encontram em palco, apenas um se destaca pela idade mais avançada. De resto, o painel é composto por gente jovem, discreta, casual. E maioritariamente feminina. Porém, é um homem que abre as hostes, referindo-se, em certo momento, que se encontravam em solidariedade com Portugal, onde se luta para mostrar que o povo é quem mais ordena. 
Entre os oradores, há um especial e caloroso entusiasmo com a atual presidente de Câmara de Barcelona. Conta-me a minha amiga espanhola, com brilho nos olhos, que o seu discurso em 2012 no parlamento foi incrível, que é uma pessoa com luta intensa contra a vida forçosamente hipotecada das pessoas. Para além desta mulher, uma outra marcante. Uma enfermeira que, em conjunto com o seu marido jornalista, denunciaram a alta corrupção nos serviços de saúde espanhóis, tendo sido acusados de difamação, mas saudados pelos espanhóis. Uma terceira mulher, jornalista especialista no Médio Oriente, vem falar-nos sobre a crise dos refugiados e relembrar a humanidade destas pessoas. 
Fala-se em castelhano (o esperanto ibérico, como apelidou o historiador galego) e em catalão. A língua regional é mais difícil de acompanhar, mas sabe-se bem do que falam. Há gente jovem (adolescentes até) e menos jovem por aqui, todos aplaudem à mudança, à humanidade e humildade, ao fim da corrupção. Aqui pretende-se fazer história e que se comprove que sim, que é apenas o início. Aqui há esperança.

sábado, outubro 24, 2015

BCN #22

Demorámo-nos logo no exterior para contemplar cada detalhe deixado preciosamente imperfeito porque, como dizia Gaudí, a natureza não tem linhas retas. Entrei tão distraída com a riqueza do exterior que tive de levar a mão ao peito quando abri os olhos para o interior. A grandiosidade do espaço faz-nos encolher ainda mais e sentimo-nos um pequeno ponto. A catedral aponta-nos para o céu, onde um triângulo laranja simboliza Deus. Tudo é alto, tudo é imponente, tudo é preciso e precioso. Aqui sentimo-nos acolhidos, pertencemos a esta fantasia modernista.A um canto, a luz azul é tão intensa que parece palpável, no canto oposto é o vermelho que queima. O nascimento e a paixão de Cristo, dizem. E ali está, suspenso, na cruz, como nunca o vira antes, sobre o altar. 
Esta é a Sagrada Família, ainda inacabada. Uma televisão mostra como deverá ficar a obra após a sua conclusão. Se hoje me espanto, o que sentirei em 2026?

sexta-feira, outubro 23, 2015

BCN #21

Esta é a Barcelona de que nos avisaram. Fervendo turistas. Diz-me ela, que já percorreu mais ruas nestes dias do que eu em toda a estadia, que se ouve principalmente inglês, francês e brasileiro. Seguimos na corrente multilinguística para mais um ponto chave da cidade: o Parc Güell.
Salienta-se o trencadís, a arte em mosaico que dá nova vida ao azulejos. A cor das obras alegra o dia e combina com o céu limpo e caloroso de hoje. Os dois edifícios da entrada dão o mote. De um lado, uma fila significativa aguarda para entrar nas salas pintadas de azul intenso que miramos cá de fora. Do outro, torre esguía sobressai de mais um telhado colorido, curvo, surpreendente pelos acabamentos alegres. 
Em frente, subimos a escadaria para encontrarmos o maior símbolo de Barcelona: a salamandra. À vez, os turistas aproximam-se para tirar a sua fotografia. Cada qual com a sua pose, ora com a mão no dorso do animal, ora arriscando o interior da boca, ora simplesmente sorrindo ali ao lado. Junto à salamandra está um guarda que, após alguns minutos a observar a cena, me parece já fazer parte do próprio quadro. Atento e discreto, torna-se visível quando alguém se encosta. Pode tocar, mas não se encoste! Pergunto-me se não merecerá também ficar numa recordação fotográfica, tal é a sua eficiência e tolerância ao aborrecimento da função.
Subimos até ao miradouro onde se tiram todas as selfies. Daqui podemos enquadrar os dois edifícios da entrada com a longitude da cidade e o mar, ao fundo. Tudo com um parapeito curvilíneo e brilhantemente colorido. Todos saberão onde estivemos. 

quinta-feira, outubro 22, 2015

BCN #20

Vamos jantar fora, provar umas tapas. Escolhemos um restaurante perto de casa onde nos recebem em inglês, certamente por entenderem do nosso aspeto turístico que não estamos no nosso país. Pois bem, vou descansar um pouco o meu castelhano e vamos então ler o menu e fazer o pedido numa língua mais internacional. Assim o fazemos até que, para esclarecer uma questão, trocamos umas palavras em português antes de prosseguir o pedido. O senhor que aguardava pelas decisões finais, desiste então do inglês e responde-nos em castelhano. Talvez seja o mais sensato, imagino que o pensem, falar com os hermanos portugueses em castelhano, que nos percebem tão bem, do que esforçar o nosso inglês, que nos sai com tanta dificuldade. 

quarta-feira, outubro 21, 2015

BCN #19

Estou aqui para conhecer o total funcionamento deste serviço. Assim sendo, vou também conhecer a sala de redução de danos. Aqui podem-se fazer consumos em maior segurança, com material esterilizado, com supervisão de profissionais que podem identificar situações de emergência e atuar de imediato. Aqui reduz-se o dano do consumo perigoso.
Fui, então, assistir a um consumo. Poderia ser uma injeção como qualquer outra (insulina, quiçá), mas não é. Apesar do ambiente estéril e hospitalar onde nos encontramos, não esquecemos do que se trata. E, não sei porquê, por vezes o corpo reage.
Sabia que não era uma visão tolerada por muita gente. O consumo já tinha acontecido, esperava-se pelo efeito e eu pensava que o pior já tinha passado. Pois foi então que o efeito, afinal, começou a fazer-se sentir em mim. Uns suores que me subiram até à cabeça, uma fraqueza a chegar, umas dormências e entendi que teria de sair dali rapidamente. Vagarosamente consoante a sintomatologia me permitia, saí da sala. Ainda ouvi alguém vir até mim de braços estendidos e deixei de ver e ouvir. Por um instante, ainda me perguntei como tinha chegado àquele sono bom, de descanso, antes de voltar a mim e perceber que não estava de facto a descansar no conforto de uma casa como gostaria, mas sim que acabara de ter uma reação vasovagal no serviço. Já lá estava comigo um enfermeiro com o esfingomanómetro e umas bolachitas e a médica, a que me estendera os braços e me encaminhara para a cadeira onde estava, que me dizia que era perfeitamente normal, que também lhe acontecera da primeira vez. Diz o enfermeiro, sorrindo, que agora tenho de voltar a assistir muitas vezes para não ficar com o trauma. Deixe estar, por agora ficamos assim.

terça-feira, outubro 20, 2015

BCN #18

A P. põe música para animar a malta e deixa o corpo dançar um pouco ao som de yo quiero bailar, toda la noche, baila baila bailando hey! Observo e sorrio, pelo que me explica que são músicas típicas das fiestas de verão espanholas. Lembro-me das portuguesas, mas adio para outra altura a partilha das músicas de tropical urbano do nosso país. 
O E. chega e pergunta se tenho encontrado muitas diferenças entre Portugal e Espanha. Confesso que não, talvez mais no horário das refeições. Explico que no meu país é mais comum jantarmos às oito. Qué?!, pergunta a P. num pulo da cadeira. Diz o E. que cá é mais por volta das dez. A P. confessa que, no seu caso, lá mais para as onze e picos, que seria impensável jantar às oito. Até porque dá aulas de teatro durante a tarde, depois de sair deste trabalho que já lhe conhecemos. Assim se aproveitam bem as horas que um dia tem. 

segunda-feira, outubro 19, 2015

BCN #17

Vejo muita gente pela cidade com cartazes informando que estão desempregados, a viver na rua, que têm fome. Por vezes, alguém entra no metro e pede ajuda. Mas nunca vira alguém pedir assim.
Um jovem entrou na carruagem e coloca-se em posição de ataque no inicio do corredor. De base alargada, voz potente, inicia o seu discurso após o arranque do engenho. Sou um jovem de 24 anos, sem emprego, e por ali seguiu no discurso sem que eu lhe tenha conseguido entender tudo. Pedia ajuda, que precisava. E, para isso, dispunha-se a vender maços de lenços. Assim que termina de citar o texto que tinha preparado, pega nos maços e dirige-os para o seu público. Porém, fá-lo de forma brusca, com arrogância no rosto, com a rapidez de quem não tem fé na bondade alheia e que ofende o outro por não permitir sequer uma resposta (positiva ou negativa) por parte de quem aborda. Não?, não?, não? Vira-se para trás e prossegue, aponta rispidamente o maço para cada pessoa que o rodeia e  num instante decide avançar para a carruagem seguinte. Pelo caminho dá uma bofetada num poste que por ali se encontrava. A zanga não deverá permitir a aproximação e empatia de muita gente.

sexta-feira, outubro 16, 2015

BCN #16

O aeroporto de Barcelona é um centro comercial multilingue. Os viajantes de todas as origens e destinos confluem na fila de mais um restaurante da mítica cadeia de fast-food. Aqui, o meu jovem castelhano é preterido em favor do inglês omnipotente pela catalã que recebe o meu pedido.
Para que não seja apenas mais um entre muitos aeroportos megalómanos, procuro por tapas. Porém, entre as lojas internacionais reproduzidas milimetricamente, as tapas parecem uma ideia bizarra. Encontro então, a um canto bem recostado, um restaurante que cumpre os meus requisitos. Pinchos. Depois de percorrer a bancada, lá decido qual provarei hoje. Sento-me junto a uma mesa onde se fala castelhano. Porém, creio que é a primeira vez que estas vozes se cruzam. Eu vou para Madrid, e tu? Hoje vou salir de copas. Dónde eres? Como se o país disperso se restabelecesse naquela mesa onde se celebra a fiesta à espanhola.

quinta-feira, outubro 15, 2015

BCN #15

Combinámos encontrarmo-nos por lá. Contava chegar mais cedo e arranjar lugar, visto que me tinha avisado que deveria estar muita gente. Ainda duvidei, pois a maioria das pessoas que eu tinha convidado para me acompanharem não davam grande importância à figura. Houve até quem não soubesse que se tratava do ex-ministro grego e, assim sendo, não entendesse sequer o significado da sua conferência. No entanto, em Barcelona havia gente suficiente com ganas de o ouvir. De tal maneira que, assim que cheguei ao Born, fiquei impressionada com a fila que já se fazia. Seria mesmo para ouvi-lo? Após confirmá-lo com o segurança, fui em busca do fim da fila. Cruzei a primeira esquina do edifício, já depois de uma longa fachada preenchida com gente, e não lhe vi o fim. Cheguei à segunda esquina e nada de ver o fim da fila nas traseiras do edifício. Seria possível? Impressionada com a multidão, e depois de umas fotografias para documentar este fenómeno, percorro toda a distância da traseira do edifício, para encontrar mais uma esquina com gente e uma quarta parede repleta de interessados. Precisamente antes de cruzar a quarta esquina, encontro o fim da fila. Vou para o meu lugar e apercebo-me que, muito pouco tempo depois, já a quarta esquina tinha sido cruzada. É-me agora impossível saber onde vai terminar.
Aos poucos avançamos, sem grande fé de que toda esta gente caiba no edifício. Encontro-me nas traseiras do edifício quando surge um funcionário que nos confirma que, dali para trás, já ninguém entrará. Corro então para tirar as teimas... afinal onde terminava a fila? Volto à fachada do edifício. O circulo já fechara e, paralelamente ao comboio de pessoas prestes a entrar, a fila seguia até à primeira esquina, não chegando a cruzá-la novamente. 
Incrível. Todas estas pessoas, de todas as idades e feitios, dispostas a esperar  mais de um diâmetro de um Centro Cultural de Barcelona para ouvir Varoufakis. Uma voz contestatária, polémica, agitadora. Há muita gente que se agita. Há muita gente que contesta. Há muita gente que espera por uma voz que lidere. Será?

quarta-feira, outubro 14, 2015

BCN #14

Fui, infiltrada, a uma aula de Psiquiatria. Asseguraram-me que não haveria problema, apesar de ser reservado para os internos de primeiro ano da Catalunha, e que seria dada em castelhano. Muy bien, vamos então. Qual não é, pois, o espanto, quando logo no início a médica que nos dará a aula pede para nos apresentarmo-nos e dizermos o que esperamos da aula. Vale, o meu castelhano há-de ser suficiente para me safar desta. Chegou a minha vez e lá me apresentei e disse, com os verbos simples que conheço, que quero saber um pouco mais sobre o assunto. A médica passa ao seguinte, mas não me livrei de muitos corpos a virarem-se para trás para observar a proveniência, imagino eu, de sotaque tão diferente.
Perguntou se poderia dar a aula em catalão, mas felizmente outra pessoa pediu para ser em castelhano. Tão fácil assim seguir a aula, é só preciso uma pequena atenção para compreender o que é dito. Até que alguém interrompe e faz uma pergunta. Não a ouvi bem, mas sei que a partir de então deixei de entender tão claramente o que a professora dizia. Um esforço maior de atenção, umas silabas que não consigo encaixar em palavras com nexo, ligações entre expressões técnicas que não sei o que significam. Será que mudou para catalão ou é de mim?
Seguimos para intervalo. Aproveito para perguntar se, agora no final, a aula estava a ser em catalão. Estava? Nem me apercebi, não sei, diz o meu colega. Se calhar estás mais cansada, diz. 
Regressamos à aula e regressamos a uma linguagem que me custa seguir. Diz ele, em surdina, tens razão, é catalão. Entretanto, como se uma luz se acendesse num quarto na penumbra, começo a entender de novo. Castelhano! Seguimos até nova pergunta em catalão e regressa o idioma mais difícil... Mas, de novo, a luz! E regressa a minha compreensão pelo discurso. Seguimos assim até ao final da aula, ficando eu a saber que me basta fiar na minha capacidade de perceber o que é dito para distinguir uma língua da outra. Porque, eles, eles nem dão conta da troca.

terça-feira, outubro 13, 2015

BCN #13

Vão encontrar a P atrás do balcão. Rapidamente vos escancará o seu sorriso e dará os bons dias. A sua juventude é especialmente notória no seu espírito. Apesar de estarmos num serviço de histórias e vivências pesadas, a leveza com que passa os dias surpreende. Mas é bem recebida. Em alguns tempos mortos, vou para a receção receber um pouco dessa alegria. La portuguesa!, exclama, na sua voz sempre bem projetada e que ocupa todo o espaço sonoro permitido naquela divisão. Pergunta como me tenho sentido em terras catalãs. Conto-lhe que bien, sorrio de volta. Comento que amanhã deverei conseguir uns bilhetes gratuitos para a Sagrada Familia. Parece-lhe muito bem e comenta que é de Barcelona, mas que nunca lá entrou. Digo-lhe, então, que deveria tentar arranjar os bilhetes também. Ri-se alto, confirma. Entretanto, alguém chega e pede atenção do outro lado do vidro e eu prossigo a conversa com o JM. Porém, é impossível. A P preenche novamente o espaço sonoro com a sua voz catalã. É absolutamente imperceptível aquilo que o JM acabou de me dizer, duvido até que tenha saído algum som da sua boca. Sorrimos, olhamos para a P e aguardamos que resolva a situação. Que voz poderosa.

segunda-feira, outubro 12, 2015

BCN #12

Saio com um sorriso e mais tranquila. É aqui. É para aqui que tenho de vir. O aperto dos últimos dias tinha de ser combatido e agora está melhor. Esta é uma casa familiar, pronta para receber gente amiga, uma casa que convida à conversa, à partilha, ao respeito. Uma casa quente. A forma como me abrem a porta e me convidam a sentar no sofá, como se fosse já família, demonstra a diferença entre as duas casas. Onde estou, as restantes habitantes não se entendem, o lixo acumula, a gordura recobre a cozinha (as gavetas, o frigorífico, as paredes), não aqueço nem o coração nem a comida. Mais acima na rua, duas pessoas conversam comigo com um sorriso transparente e convidam-me a ficar. Não há duda, no próximo mês estarei melhor.

domingo, outubro 11, 2015

BCN #11

Vim para um jardim ler. Lembrei-me de visitar o Parc da Ciudadella, que ainda não conhecia.Vim a pé, para aproveitar este sol que não tardará a ser coberto. Como a caminhada foi longa, sento-me logo junto à entrada do parque, para descansar e ler. Adianto algumas páginas, até que o som do jardim fala mais alto. Oiço o ritmo da percussão e vou em busca da origem. Por entre alguns montes verdes, descubro um grupo de jovens que tocam djambé em cadência acelerada. Não me detenho porque entendo que estas são apenas as boas vindas. Entre algumas árvores há quem se tente equilibrar numa fita em tensão enquanto outros lançam massas em malabarismos certeiros. Uma criança brinca de cabeça para baixo no pano largo que desce do ramo alto de uma árvore. Oiço outro ritmo mais à frente e encontro um circulo de gente de mãos dadas, sapateando e dando ritmo ao que improvisa antes de passar a vez ao do lado. A cascata monumental observa o grupo e é fotografada pelos turistas que a descobrem. Avanço um pouco mais e encontro um lago com barquinhos repletos de famílias. Alguém me pede para me desviar, que estou a mais no enquadramento da fotografia, e sorri-me agradecendo a compreensão. Sigo caminho e encanto-me com a familiaridade deste jardim. Está tão habitado.

sábado, outubro 10, 2015

BCN #10

Foram os sons que me acordaram no bairro da Gràcia. Ainda cedo, ouvia já o movimento das pessoas, das lojas que vão abrindo, das famílias que saem à rua, das crianças que brincam. Na Plaça Virreina, em frente à igreja de Sant Joan, um círculo de escuteiros brinca ao lencinho e a juventude preenche a esplanada do café. Seguindo para oeste, descubro o mercado da Libertat, que se encontra já animado, com um cheiro a mar que me lembra o meu país. Percorro as bancas de peixe fresco, marisco variado, carnes vermelhas. Queria uma cozinha melhor para, quiçá, me aventurar a experimentá-los cá. Sigo de novo para este, onde a Plaça del Sol é vigiada por ancianos, que ocupam os bancos disponíveis em redor da torre do relógio e onde apreciam o bom tempo e a companhia. Numa varanda no topo da praça, uma mulher arruma as suas plantas ensolaradas e aproveita, certamente, para petiscar deste sol quente de outubro. Para o aproveitar também, decido descer até ao mar.
É dia 10 de outubro e em Barcelona banha-se no Mediterrâneo. As praias estão cobertas de costas ao léu, toalhas estendidas, gente imensa. Entre os que se bronzeiam com o sol de outono circulam outros que anunciam pareos e mojitos. Nos degraus do passeio, senta-se quem não tem ou coragem ou indumentária para se aventurar na areia. Ao nosso lado, uma banda toca folk e agita-nos o corpo. O céu limpo, o calor, o tempo livre. Descanso.

sexta-feira, outubro 09, 2015

BCN #9

Ao fim de uma semana, a conversa coloquial melhora, já se ri em conjunto e, no final do dia, recebe-se um convite para ir tomar algo depois do trabalho. Aceito.
Sigo com mais dois colegas para a Barceloneta, lugar que me deram à escolha, visto ser ainda estrangeira nesta cidade algo desconhecida. Caminhamos junto à praia, coberta de gente acalorada, e conversamos, sorridentes. Diz-me o S. que é muito perguntador. Quer saber de mim, quem sou, do que gosto. O M. brinca com as minhas respostas e a conversa flui, como se não houvesse uma língua ainda desconfortável para mim. Procuramos por crepes e chocolate, que cai sempre bem um reforço seretoninérgico no final da semana. Sentamo-nos, comemos, conversamos. Aos poucos, criam-se novas amizades que cruzam fronteiras e harmonizam a linguagem. Hoje sinto-me um pouco mais em casa.

quinta-feira, outubro 08, 2015

BCN #8

Entrou com a mãe, que ela saberia de tudo, não haveria problema em estar presente. Cabisbaixo, conta a sua história. Tem estado abstinente nos últimos meses, desde que ingressou a associação, mas teve uma recaída. Mostra-se culpabilizado e triste com o aparente retrocesso, que diz ter sido apenas uma vez. Lá na associação não acreditam, pedem para que refaça a carta das culpas. Não compreende como é que a sua honestidade não é valorizada e compreendida. Mas o que mais lhe custa, diz-nos, é estar sozinho. Não tem amigos. Todos se afastaram ou apontam agora o dedo categorizando-o com os comportamentos de um passado que diz que já não lhe pertence. Quer ser alguém novo, limpo, capaz. Quer ter alguém a seu lado. Quer ajuda. Chora e comenta, "sou muito sensível, pode escrever aí nos seus apontamentos".

quarta-feira, outubro 07, 2015

BCN #7

Acordo de madrugada com ruído em casa. Apercebo-me que as minhas colegas de casa estão a conversar, provavelmente no corredor, que fica já ali junto ao meu quarto. Não distingo claramente o discurso, mas é evidente que não são horas para conversas. Confirmo-o, são três da manhã. Apercebo-me que tom não é tão amigável como de início me pareceu. A certa altura, uma delas recolhe-se no seu quarto e a outra, ao entrar no dela, atira com a porta, agredindo o respeito pelas restantes pessoas da casa. Sai de novo do quarto e bate furiosamente na porta do quarto da outra colega, dizendo que está fully awake e que quer conversar. Isto não acabará? Cessou pouco depois e lá consegui adormecer de novo.
O conflito acompanhou-me o dia inteiro. Carreguei-o num nó epigástrico que me faz questionar. Cheguei ainda há pouco a esta cidade e procuro um espaço de paz e conforto para onde possa voltar ao final do dia. Hoje, esse regresso inquieta-me. Não sei como será nos próximos dias, semanas, meses. Como são afinal estas pessoas? Onde fico eu no meio do conflito?
Hoje é dia de aflição.

terça-feira, outubro 06, 2015

BCN #6

Não acreditou em mim, doutora. É assim, basta eu dizer que tenho esquizofrenia e as pessoas afastam-se. E senti-me mal ali, não confiam em mim. Vou para lá para deixar de fumar, mas assim que digo que tenho esta minha doença, eles não acreditam que eu seja capaz. E eu que já deixei de beber e que perdi todos estes quilos... Não sei qual é a experiência que têm com outros como eu, mas não é justo. Se eu estou ali é porque quero mesmo parar. Porque falaram assim para mim, como se fosse uma criança prestes a portar-me mal? Mas eu vou voltar lá, sim, doutora, a vontade é não ir, mas eu vou. Confio em si, que me diz que não tem a ver comigo e que é importante manter o seguimento, eu sei, e irei lá mostrar que sou capaz. Quero mesmo isto, doutora. Agora estou bem, estou muito melhor, e quero fazer isto por mim. Obrigada, doutora, até à próxima.

segunda-feira, outubro 05, 2015

BCN #5

Não vai ser assim tão fácil... Não quer dizer que não haja simpatia, fui bem recebida, com um sorriso por todos, com lembranças de que estão disponíveis para o que for preciso, para perguntar o que for necessário. Levam-me a almoçar, introduzem-me no grupo e na conversa, mas afinal... 
Um mês intensivo não é suficiente para saber castelhano. Muito menos quando o castelhano é falado a vários sotaques regionais ou misturado com uma pitada de catalão (será? ou apenas uma razão que procuro encontrar para, por vezes, não entender nada mais que o tema geral da conversa?). Aliás, não precisa de ter pitada de catalão, basta a velocidade hiperativa da conversa e da coloquialidade do discurso, as expressões idiomáticas e os trocadilhos culturais que desconheço. Vale-me a linguagem técnica, que torna todo o discurso em contexto de trabalho eficaz e o bastante para me saber competente neste lugar. Aguardo, então, o tempo que me dizem ser essencial para que tudo seja mais fluido. Até lá, vou aprender bem mais do que conhecimento médico. Como diria Abel Salazar, "quem só sabe de medicina, nem de medicina sabe".

domingo, outubro 04, 2015

BCN #4

Hoje há eleições no meu país e eu aguardo apreensivamente pelos resultados. Em casa, noutra língua, discute-se o que está em jogo. Explico a minha visão dos últimos quatro anos, da situação atual, das previsões das sondagens, da minha ideia sobre o que acontecerá num caso e noutro. Ela ouve, acena, compreende, associa aos desenvolvimentos politico-partidários e económicos do país onde nos encontramos e partilhamos preocupações. A certa altura falamos em ordenados, no dinheiro que se ganha... Earn! Earn! Como? Fiquei um pouco confusa com a interrupção do discurso, mas rapidamente me esclarece. You earn money, you don't win it.  Comenta que a surpreende esta visão ibérica do dinheiro, da forma como usamos a expressão "ganhar dinheiro", como se fosse uma sorte o termos. É mentira, trabalhámos para o merecer. You earn it. O que será que esta lacuna linguística fará da nossa forma de vermos o nosso dinheiro e a forma como é manipulado?

sábado, outubro 03, 2015

BCN #3

Adormecemos ontem com a decisão tomada. Pela manhã, fizemos as malas, mudámos, limpámos, arrumámos. Como o dia não pode ser só feito de angústias domésticas, seguimos para um passeio pela cidade.
A pé, repetimos, em sentido inverso, a caminhada imensa dos dias prévios. Passeig da Grácia, Plaça de Catalunya, Les Rambles. Virámos à esquerda, para a Plaça Reial e decidimos embrenhar-nos no Bairro Gótico, que ainda não conheceramos. Pela Carrer de Ferran, chegámos à Plaça de Sant Jaume, onde, em frente à Câmara Municipal um grupo se manifestava em prol dos refugiados. Assim o julgamos, visto que a língua catalã não nos é tão transparente como gostaríamos. Enquanto fotografava um edifício cuja cor alegre e textura distinta das paredes sobressaía do resto da praça, reparei que, ao canto da imagem, na ruela que torneava este edifício, uma ponte refinada introduz o Gótico do bairro a que pertence. Seguimos, então pela Carrer del Bisbe, em direção à música erudita que ouvimos. Encontramos então, a Catedral, enfeitada com uma orquestra de sopro que nos convida a aproximar-nos. E aproximamo-nos até entendermos que a música serve um propósito maior. À frente da orquestra, vários circulos se formaram. As malas amontoam-se no centro do círculo, as pessoas dão as mãos e os pés dão o ritmo à união. Saltitando, fletindo, cruzando o pé delicadamente sobre o outro, calcanhar no chão, calcanhar no ar, braços em cima e em baixo, assim dançam ao ritmo dos sopros. São pessoas de todas as idades, mas sobressaem as personas mayores, os que carregam história e tradição e, provavelmente, um sangue catalão convicto. É, pois, o que imagino que carregam estes movimentos coordenados, surpreendentes, uníssonos. Uma cultura.

sexta-feira, outubro 02, 2015

BCN #2

E começa a caça à habitação. Da lista interminável de opções, filtrámos por valores e por zonas, repescámos o que o olho recomenda e começámos hoje as visitas. Com apreensão e algum entusiasmo, dirigimo-nos à primeira agendada.
Estamos no ponto nevrálgico da cidade, não muito longe do mercado que visitámos na véspera, numa perpendicular à avenida mais turística da cidade. Nas costas dos japoneses que fotografam o Palácio Güell está a porta que nos aguarda. Não inspira confiança, mas não é certamente o exterior que definirá o sítio. Entramos e quiçá não será também o hall de entrada do edifício, escuro, frio e abandonado, que o definirá. A porta abre-se e talvez agora começaremos a entender que tudo isto define esta casa. Casa? Por momentos, no corredor comprido, alto e descaracterizado que percorro após ultrapassar a porta, pergunto-me se será já isto a casa ou apenas um pátio com um teto e paredes  longas que nos leva à casa real. Não, é mesmo isto. É o prato com espaguete verde e meio bife no chão a um canto da divisão, são as paredes que delimitam pequenos espaços retangulares onde cabe um colchão e nenhuma janela, é o abandono, o silêncio e a marginalidade que aparentam governar o ambiente. São os cães no quintal, que nos cumprimentam e pulam atrás da porta envidraçada, que nos dão algum alento ao espírito, rapidamente abafado pela ameaça do chinelo que o jovem lhes oferece. Já que ali estava, aceitei percorrer toda a decadência como se de uma visita de estudo se tratasse. Há mais um quarto, com janela, mas esta rua tem muito ruído à noite, diz-nos. Os olhos envidraçados, a lentidão na conversa e postura longínqua completam o registo toxicómano de todo o espaço. Agradecemos a simpatia e saímos. 
Diz ela, pálida, inexpressiva, demorada, assim que nos encontramos de novo junto aos turistas japoneses, "nem sei o que dizer"...

quinta-feira, outubro 01, 2015

BCN #1

Deve ser isto, só pode. Entrámos por gostarmos de mergulhar nestas bancas de fruta fresca e queijo forte, sem saber ao certo que era ali. Rapidamente percebemos que estavamos na Boqueria, pela inundação de pessoas de câmara em punho, selfies a serem tiradas, presunto a ser provado e dinheiro a sobrevoar as bancas. Cheira a especiarias de um lado, impressionam os legumes e frutas do outro. Mais à frente, torna-se difícil sair da frente da montra sem levar um (ou mais) dos queijos expostos. Perdemo-nos deliberadamente nas ruelas do mercado. Andamos às voltas tentando absorver todos os sabores com recurso à empatia pelo deleite dos outros. Observamos atentamente para descobrir o único e excecional. E vemos então a montra que mais ficará na memória, pela crueza dos produtos. A cabeça da cabra, de língua de fora e os olhos espantados, ao lado de miolos embalados numa caixinha de plástico. Reconhecemos ainda testículos, um focinho de porco, estômagos, corações e outros que tais que as nossas aulas de anatomia nos permitiram reconhecer. Bem sei que em terras lusas não faltam destinos para estes repastos, mas vê-los assim, crus, limpos e inteiros, surpreende.