domingo, fevereiro 22, 2004

A Manhã - Parte I

Acordei. De um grande pesadelo, suponho, porque estou enchardada em suor. Sento-me na cama como a descansar da noite, à espera que o meu coração acalme e que esfrie o meu corpo. Respiro fundo.
Assim sentada, olho pela janela à minha frente. É daquelas janelas grandes que vão desde o chão até quase ao tecto. São optimas para deixar a luz entrar no quarto suado e para nos aliviar o espaço fechado destas quatro paredes. Mas hoje, neste momento, ainda não transborda muita luz. Deve ter amanhecido há instantes. Oiço ainda pequenas gotas de àgua pingarem sobre o parapeito, fazendo-se soar. Nada melhor que o som do orvalho, da ultima chuva para acalmar o coração que pulava. Levanto-me e vou até à janela. Espreito para a rua, onde passa um carro apenas e tudo parece estático. O chão molhado mas de uma doçura tão fresca como a manhã. Os tons laranja que o Sol traz são a unica vida que vejo.
Atento agora no meu quarto. A um canto, a minha companheira ainda dorme na sua cama. Invejo-lhe a paz, a serenidade... os sonhos bons. Até a posição desleixada com que dorme, metade do corpo fora do lençol, de boca aberta e ocupando bastante espaço. Faz-me sorrir. Somos tão diferentes mas é essa mesma diferença que nos aproxima. É bom chegar a casa e não ter de enfrentar os olhares apodrecidos das paredes, as faces palidas da familia que se julga idela. Eu não mudei mas sinto-me mais leve sem ter de enfrentar todos os dias a desilusão da minha família. Pelo menos, a minha companheira é boa amiga e faz-me sorrir. Algo que por vezes pode ser bastante difícil. Somo agora... Agora que acordei e estou sozinha, porque todo o Mundo ainda dorme.
Olho agora para o resto do quarto, como se o visse pela primeira vez. Uma cómoda ao lado da janela com uma gaveta entreaberta e uma manga branca a espreitar para fora. Em cima, uma imensidão de frascos e frasquinhos, perfumes, desodorizantes, cremes, lacas, "gel"s . E mais uma quantidade de maquilhagens espalhadas, como se alguém tivesse fugido no momento em que se arranjava. Um roupeiro junto à minha cama, fachado, escondendo talvez a pele de alguém. O chão alcatifado com rascunhos, apontamentos, esquemas e auxiliares de memória espalhados pelo vento da respiração do estudo. Tudo isto... é o dia de ontem. Se avaliar cada pormenor com atenção posso descobrir tudo o que se passou ontem e em que momento a minha companheira adormeceu. Todos estes objectos ficaram presos nesse momento. E eu acordei umas horas depois...
Tentando não pisar muitos dos papeis aparentemente desorganizados no chão, saio do quarto e vou para a casa de banho. Sinto-me bastante incomodada com a roupa colada ao meu corpo pelo suor do sonho. Preciso de um banho... Preciso não só de me limpar da imundice dos meus lençois mas também da sujidade da minha cabeça. E é no banho que me refugio, que me encontro e me volto a perder. E tenho tempo para o fazer outra vez, o sono foi-se e o dia mal chegou.
Enquanto a água enche a banheira, dispo-me lentamente. Olho de relance para o espelho mas tenho de para e voltar a olhar... Estarei viva? Todo o meu corpo está palido e magro, os meus olhos ainda estão inchados da noite anterior (felizmente, sei chorar em silêncio), os meus lábios finos estão esbatidos, as minhas palpebras estão pesadas, o meu cabelo está... louco, será talvez a melhor palavra. Fito-me por momentos, como confrontando-me com a vida. Mas depressa desisto de procurar alento naqueles olhos vazios.
Vagarosamente, vou entrando na banheira. Já não sei entrar a outra velocidade. Gosto de sentir a água a envolver-me aos poucos, a engolir cada pedaço de pele do meu corpo e a sugar-me a sensação de sujidade. E acalma-me, a paz da água, fresca, convida-me a acomodar-me, a sentir-me em casa, de volta a casa, de volta ao útero de minha mãe. Bem, mãe biológica porque não tive outra. E nem vou vaguear sobre isso agora, não é o momento. Encosto-me já confortável e sem peso no meu banho e fecho os olhos, saboreando. Não sei quanto tempo assim fico, simplesmente saboreando, mas não me interessa, o tempo parou e preciso de sentir esta liberdade momentânea. É estranho, chamar-lhe liberdade, mas é o que eu sinto, é o peso do meu corpo que se afoga nesta água, só me pesa a cabeça, nada mais. É libertador.
Apetece-me um cigarro... Felizmente, ainda tenho alguns no maço que escondo naquele canto entre a banheira e o armário. Eu sei, devia deixar, mas não tenho muita facilidade em deixar vícios... Acendo o isqueiro com alguma dificuldade e, por momentos, escassos, admiro o poder da chama. Chamou-me outra vez mas não, hoje não a vou apreciar mais. Acendo o cigarro e dou a primeira golfada... É uma sensação estranha para mim, sentir um fogo a entrar-me pela garganta adentro enquanto a água me beija o corpo. Mas sabe-me bem. Recosto-me novamente na banheira, fecho os olhos e sinto.
Preciso de sentir. Os dias passam, as horas passam, e eu não as sinto passar. Preciso de viver, de me sentir viva. E esta angústia de viver pesa-me muito. Um negrume dentro de mim que me vai consumindo. Eu luto, a sério que luto, contra este aperto, até porque não imagino o que seria de mim se não o fizesse. Poderia rebentar, talvez. É difícil, por vezes, aguentar o peso sem procurar aliviá-lo. E pior é não encontrar maneiras melhores de o fazer. Devia gritar, mas não tenho voz nem coragem de o fazer, poderiam ouvir-me e fechar-me num quarto pequeno onde a loucura me faria finalmente companhia. Devia correr, mas não tenho forças nem vontade de me mover tanto. Devia falar, mas a libertação das palavras iria prender-me à confusão e à angustia de quem ouviria tais negros ditos. Às vezes pergunto-me se não haverá outra solução. Decerto haverá mas é difícil acreditar, quanto mais encontrá-la. Suponho que esteja doente. Não só de corpo, já tão fraco e sem razão, mas também de espirito, igualmente sem razão para estar fraco. Não sei porque estou assim. Não me aconteceu nada. Nada... se calhar foi essa mesma inexistência de coisas alguma. O cansaço constante, os pesadelos, o suor, as insónias, os olhares. Tudo parece sem significado, sem qualquer origem obvia. Mas o que é facto é que estão cá, sempre presentes. E eu preciso de aliviar. Preciso de descansar. Preciso de esquecer, deixem-me um momento só, por favor, só agora, neste banho, nesta manhã eterna em que o sol se esqueceu de terminar o seu sono. Pode...? Obrigada... estava a precisar desta paz.

terça-feira, fevereiro 17, 2004

Afinal, nem tudo o que escrevo vale a pena ser lido...