terça-feira, setembro 23, 2003

A Lareira

É noite de Inverno. É sempre Inverno por aqui. E costuma também ser sempre noite. Mas esta noite está diferente. Está tanto frio lá fora. E cá dentro. Estou no meu casarão, naquela mansão abandonada e descuidada no meio de uma floresta escura e imprevisível. Estou sozinha. É a minha casa, sou eu. Sozinha neste casarão enorme, frio, escuro. Das janelas abertas vem uma luz azulada, a mistura entre o negro da noite e o reflexo branco da lua. A casa está de um tom azul escuro. É noite e eu estou apenas com a minha camisa de dormir vestida. Sinto-me tão frágil, tão inevitável. Descalça, percorro os inumeros corredores iluminados apenas pela lua, enquanto a minha camisa de dormir esvoaça junto aos meus joelhos com a brisa que vem das janelas. Não tenho rumo, estou sozinha, não tenho motivos. Mas detenho-me no salão. Enorme, com aqueles sofás tão confortáveis que olham a lareira. Que estranho, costuma estar apagada. Não costuma haver fogo, nem calor dentro daquela mansão. Entro na sala. Quem terá provocado aquele lume? Será que é mesmo isso. Aproximo-me, muito a medo. Mas, aos poucos, esse medo vai desaparecendo. Está quente, está a aquecer as minhas canelas, frias há tanto tempo. Do azul escuro e apagado daquele salão, o laranja vivo chama-me até ele. Tão belo, aquele fogo! Sento-me em frente à lareira, não nos sofás já gastos, sento-me no chão como uma criança que acaba de descobrir o fogo. Sorrio. Quero ficar aqui, a olhar este fogo, na lareira deste casarão vazio, o resto da noite, o resto da minha vida. Aquece-me o corpo, está a crepitar só para mim. Conforta-me. Aquele som soa-me como uma canção de embalar, sussura-me ao ouvido que está tudo bem, agora não estou sozinha, aquele fogo faz-me companhia. Os lobos que habitam a floresta que espreita pelas minha janelas, juntam-se num canto único à canção do fogo. Esses uivos, que tanto me assustaram a vida toda, sempre com medo deles, que me saltassem pelas janelas sempre abertas e que me devorassem, sem eu poder fazer nada, esses uivos agora até me pareciam inocentes. Que noite tão bela! Abraço-me. Mas já algo me está a abraçar. Uma manta, que me está a aquecer ainda mais. Mas não é uma manta qualquer, pois as mantas só aquecem. Esta manta protege-me, abraça-me e contempla comigo o espectáculo que o lume nos proporciona. Estamos tão quentes. Não estou sozinha, tenho o meu fogo, na minha lareira agora laranja, tenho a minha manta que me protege do frio e não me deixa morrer aqui sozinha. Que noite tão bela! Pelo som, até parece que neva lá fora. Mas não quero sequer olhar, os meus olhos estão paralizados pela beleza da luz do fogo. Sou livre de desviar o olhar, de me levantar e sair dali, de me refugiar no meu quarto, de ver a neve a cair, de contemplar a noite escura lá fora. Mas não o faço, porque estragaria este nosso momento. Sozinha, neste casarão, sentada no chão em frente à lareira, envolta por uma manta castanha, agasalhada pelo calor do fogo, ouvindo a canção que a madeira me canta ao ouvido e que os lobos lá fora acompanham com os seus uivos. Frágil, insignificante, sozinha. Apesar disso, sinto-me protegida, sinto-me como a dona da noite, alguém preparou esta beleza toda para mim e eu nem sei quem é. Será que foi a manta que me prende os braços e que escorre pelo meu pescoço? É sempre bom sonhar. Estou feliz agora, estou a sorrir para o fogo que contemplo. Ele sorri-me de volta, estou em paz com o que me rodeia. Sei que está frio mas não o sinto, estou tão aconchegada aqui. Baloiço lentamente ao som da música da noite. É tudo tão belo, tão perfeito!
Procuro à força afastar a razão deste momento. A noite vai acabar, a lenha vai ser toda consumida e não haverá mais fogo, o frio voltará e a manta será inútil. E eu, aqui sozinha com medo do escuro, vou ser acordada pelo entrar retumbante do resto de mim, que mora usando todo o esplendor e toda o poder que aquela casa poderia possuir, que me destruirá esta felicidade momentanea. Depois de bater com a porta ao abri-la, com passos pesados e temerosos, aproximar-se-á de mim, com olhar fechado, e com o balde que se encontra ao lado da lareira (não tinha reparado nele, seráque já ali estava quando entrei?) apagará com um só movimento o fogo que me aquecia e que me confortava. Olhará para mim, com raiva, arrancar-me-á a manta, mostra-me os seus buracos, a sua insignificância e pobreza e manda-me de volta para o meu quarto escuro e frio, onde, em cima da minha cama dura chorarei para aquecer a minha almofada. Repreender-me-á por ter sonhado, por ser feliz com aquele momento. Eu tenho tudo! Vivo numa casa enorme, sou a única dona dela, posso fazer o que quiser com ela. E não me contento com isso?! Como será possível! Já o estou a ouvir... Qual a beleza de me sentar no chão quando tenho os melhores sofás a um metro de distância?! Qual é a beleza da música da noite (como a consegues ouvir?!) quando tens todos os vinis de todas as músicas belas inventadas pelo Homem?! Como te podes sentir acompanhada se não tens mais ninguém em casa?! Só este personagem é que, de vez em quando, me visita, para se certificar que se mantém tudo igual. É tão fria. Eu só tenho a minha camisa de dormir, leve e frágil. Só posso baixar a cabeça e seguir as ordens. Não tenho força, sou fraca, é um facto. Nunca mais o fogo voltará, nunca mais a manta me abraçará outra vez e os lobos jamais me cantarão novamente com carinho a música da noite. Volto ao ponto de partida.
Não estou a pensar nisto neste momento. Continuo em frente à lareira, sentada no chão, abraçada pela manta castanha, aquecida pelo fogo que (me) consome a lenha, embalada pelo crepitar da madeira e pelos uivos inocentes dos lobos cinzentos da noite. Estou feliz e vou sonhar que a noite não vai acabar nunca, e que vou sentir-me tão confortável como agora para o resto da minha vida. Não interessa que tenha tudo o que precise fora deste salão, atrás de mim. Esta mansão nunca me deu felicidade. Não como esta que estou a sentir ao sorrir para o fogo. É grande, tem tudo o que possa imaginar. Só não tem amor, não tem calor, não tem carinho. Vou sonhar que esta madeira nunca acabará de arder e que me aquecerá e dará o que eu preciso para o resto da vida.E a manta deixará de ser manta para se fundir comigo, será então a minha pele. Não me vou mover, apenas me baloiço ao som da música da noite que não acabará. Essa música que me sussura ao ouvido “Está tudo bem... Vamos fazer-te feliz... Só tu importas agora... Sorri...” E a brisa será convidada a entrar, e brincará com os meus cabelos, beijará a minha face, os meus olhos, os meus lábios, o meu colo. Estou, finalmente, a sentir-me viva. E, se acreditar muito, talvez isto nunca acabe e o resto de mim nunca baterá com a porta ao entrar no salão... E, quem sabe, silenciosamente, também se unirá a mim e finalmente nos compreenderemos e nos uniremos numa só...

domingo, setembro 21, 2003

- Na realidade, estamos todos sozinhos. Alguns apercebem-se disso mais cedo, outros mais tarde, mas todos, em alguma altura da vida, se sentem sozinhos e se dão conta que isso não poderá mudar muito. Todos juntos na multidão, mas sozinhos. E porquê? Porque ninguém pensa como nós. Ninguém sabe precisamente o que sentimos, ninguém consegue entender as nossas frases, os nossos textos, as nossas expressões da maneira como queriamos, da maneira como estamos a pensar para as dizer, escrever ou fazer. Vivemos à base de relações com outras pessoas, relações de amizade, companheirismo, amor. Mas essas pessoas vão-se afastando, o tempo não pára, as pessoas mudam, viajam, envelhecem, esquecem, fazem escolhas e no fim morrem. Durante todos estes processos, muitas das relações que tinhamos vão perdendo o contacto e fazem-nos sofrer, fazem-nos sentir de novo sozinhos.
- Que pensamentos tão pessimistas! Claro que vamos acabar com certas relações e amizades que temos neste momento mas da mesma maneira com que vamos criar mais relações, novas ligações ao mundo e nunca estaremos sozinhos! Há sempre alguém, mesmo que não o queremos ver, que está por trás de nós e que estará lá se pedirmos ajuda. Há sempre alguém que nos ama, que se importa connosco, que quer estar presente. Mesmo que, por momentos, não o conseguimos ver...
- Isso é verdade, mas não deixamos de estar sozinhos. A nossa mente está sozinha. Todos sabemos que cada um pensa de sua maneira, não há duas pessoas com personalidades identicas, talvez parecidas, mas nunca iguais. Os nossos pensamentos estão sozinhos. As pessoas que estão de fora interpretam-os à sua maneira e nunca perceberão exactamente o que queremos dizer. Estamos sozinhos com os nossos pensamentos. E, quem não percebe ou aceita isso, desiste de pensar e diz tudo aquilo que os outros estão à espera de ouvir. Mas, por outro lado, os que tomam consciência disso mas acreditam nos seus pensamentos e no seu valor, hão-de estar sempre sozinhos na luta pela afirmação das suas opiniões e ideais.
- Somos únicos entre os diferentes exemplares da nossa espécie. Mas estamos todos interligados. Podem não compreender da maneira que tu queres a tua opinião mas hão-de lá estar por ti. Mesmo se não te entenderem na perfeição, não deixam de te amar e de te querer abraçar. Aos poucos vão percebendo melhor o que tu és interiormente e a tua solidão não será tão grande. E há certas expressões, certos actos que são universais.
- Como é que se abraça uma alma? Não é com os braços. Esses, o mais fundo que vão é à superfície da tua pele. Consegues fundir duas pessoas por um só momento? Consegues fazer com que essas pessoas consigam tocar na alma uma da outra? A tua alma, o teu pensamento, está tudo prisioneiro na tua massa cinzenta do teu cerebro e as sensações físicas que te conseguem transmitir, dificilmente chegam à tua alma. Sentes por fora, queres sentir por dentro. E só para fazer ainda mais intriga, não poderás ter a certeza das intensões daquela pessoa ao abraçar-te.
- A tua conversa leva-me a crer que nuca ninguém te abraçou. Tu é que disseste, todos temos consciência que os nossos pensamentos são unicos e ninguém poderá compreendê-los perfeitamente e talvez, nem nós próprios. E quem te abraça sabe disso, e também sabe que o que a poderá ligar mais a ti é por um abraço, pelo toque, porque uma coisa têm em comum: um corpo. E se essa pessoa também aceitar os seus pensamentos e o seu valor, usará o seu corpo em função desses pensamentos, usá-lo-á para te abraçar a alma, pois é isso que pretende, apesar de só atingir a superfície da tua pele. Se não quiseres usar o teu corpo para mais nada, ao menos usa-o para transmitir os teus sentimentos pois é a unica coisa material que possuis e que podes manipular à tua vontade. Ele está lá para te servir.
- Por favor, não vamos começar de novo a discutir a função do corpo! Ele está lá para me servir?! Ele está cá para me pedir, me implorar, me arrastar e me limitar.
- O teu corpo condiciona-te muito, é verdade, mas se acreditas que a mente está sobre o corpo, poderás viver em paz com ele, dando-lhe o que ele necessita para se manter vivo em troca de alguns favores que ele te poderá dar para te libertar um pouco dos teus pensamentos. Mas tu nunca vais perceber o que eu quis dizer com isto porque os nossos pensamentos estão separados e sozinhos nos neurónios do nosso cerebro. Mas levas um abraço, pode ser que eles se aproximem e que, por momentos, se fundam e se compreendam...

(São estas as conversas que tenho comigo própria. Estou muito confusa, não? É a minha alma pessismista contra a minha alma optimista. Ainda não alcansei o entremedio. Talvez não exista, o mundo é todo constituido por opostos. E terei de viver com eles os dois, o pessimista e o optimista, e com todos os pensamentos opostos que tenho. Assim pode ser que agrade a todos... E termino por agora)

quarta-feira, setembro 17, 2003

Li no livro "As terças com Morrie" uma ideia curiosa que passo a descrever.
Morrie adoece gravemente e sabe que vai morrer em breve. Lembra-se então de um funeral a que foi de um amigo e das palavras tão bonitas que ouviu sobre o falecido. E teve pena desse seu amigo já não poder ouvir tudo aquilo que foi dito em sua homenagem. Por isso, antes de morrer, combinou com os seus amigos um funeral. Juntaram-se e os seus amigos falaram sobre ele, mostraram a sua amizade, leram-lhe poemas dedicados a Morrie. Choraram todos juntos.
Recebo muitos e-mails, daqueles forwards, com mensagens como esta, ligeiramente diferentes. Podemos morrer a qualquer altura, será que não queremos morrer sabendo que os que amamos saibam desse nosso amor? E nós não gostariamos de nos poder despedir de alguém, dizendo-lhe o quanto é importante para nós? Acho que, de vez em quando, deviamos fazer destas sessões. Não lhe chamariamos de funeral, claro, isso assusta muito. Mas é tão agradável poder dizer às pessoas o quanto são importantes nas nossas vidas. E ouvir de volta esses comentários, e apercebermo-nos que, se nos fossemos embora, havia muita gente que daria pela nossa falta. Mas provavelmente, se eu telefonasse a alguns amigos a combinar este "funeral", esta "festa", poderiam achar muito lamechas ou então, poderiam recear a minha sanidade mental... Pode ser que um dia me compreendam...

terça-feira, setembro 16, 2003

Estive a pensar no que escrevi à bocado. E achei que as ideias que ficaram poderiam ser mal interpretadas.
Muitos dos meus colegas que poderiam ler o texto, provavelmente se identificariam com as características que eu referi como sendo as consideradas "normais" nos adolescentes. E poderiam pensar que eu menosprezo-as.
Eu só queria deixar claro que apesar de não me sentir dona de grande parte dessas características, não deixo de me dar com pessoas assim e de gostar muito delas. Primeiro, porque me aliviam um bocado dos meus pensamentos pesados. E por outro, porque não deixam de ser boas pessoas de quem gosto e gente com quem posso contar para o que precisar.
Por isso, não queria deixar de dar valor aos adolescentes de hoje. Eu é que sou diferente, se têm criticas, elas que caiam sobre mim...
Qual a definição de adolescente? Ontem irritei-me com a definição actual. Fui a uma livraria e peguei em alguns livros novos sobre adolescência, diários de adolescentes, da minha idade, mais velhos até (neste caso até eram raparigas). E então, li na contracapa, que o que preocupava estas jovens eram os namorados, as saídas, o seu corpo, a sexualidade. Por favor!! Será que temos de pensar nisso para sermos considerados adolescentes?!
Pelo que eu sei, a adolescência é uma fase difícil. Todos sabemos disso. Mas não nos façam de parvos. Eu tenho os meus problemas mas são completamente diferentes dos representados nesses livros. Não me sinto sozinha porque não tenho namorado, ou porque não há ninguém goste de mim (daquela maneira especial, já se está a ver). Sinto-me sozinha porque tenho ideias e objectivos diferentes de todos e remo um bocado contra a maré. Não estou preocupada com as modificações normais do meu corpo, nem com o facto de ser bonita ou feia (pensando bem, acho que sou a unica rapariga que conheço que nunca se maquilhou...). Estou preocupada com o meu crescimento mental que quer ultrapassar o pequeno espaço corporal que ocupo, quer ser mais do que esta massa. Será que tenho de experimentar drogas, alcool, más companhias, será que tenho que ir a discotecas, a bares, embebedar-me, curtir com um gajo numa noite, fugir de casa, vestir-me de um modo só para contrariar os pais para poder ser considerada adolescente "normal"? Então não o sou. Nem o quero ser. Todas essas questões me parecem agora tão superficiais. Especialmente aquelas paixões.
Eu já não percebo como é que alguém se apaixona, namora uma semana e depois o casalinho cança-se e acabam. Daí a duas semanas cada um já tem outro par. Grandes paixões, não é verdade?... E depois, as conversas que oiço entre os grupos em que estou. As meninas falam dos garanhões que passam, dos seus namoricos, de intrigas, dizem mal umas das outras, criticam a roupa que aquela usa. Os rapazes, não sei se ainda tanto, falam de jogos da PS2 ou do PC, falam de música, mandam piadas porcas, jogam futebol, discutem futebol, discutem gajas, os próximos alvos, vão-se atirando à primeira que se aproxima. E nem sei o que fazem nos balneários mas pelo que tenho ouvido não deve ser própriamente leitura de poesia.
Talvez com isto concorde com aqueles que dizem que a nossa juventude está perdida. Mas também sei que há excepções. Conheço algumas. Mas sei também que são excluídas de alguns grupos de não fizerem isto ou aquilo. Só espero que se mantenham fortes porque merecem muito mais atenção do que as intrigas que se ouvem por aí...

terça-feira, setembro 09, 2003

Ensaio sobre o Choro – A história de uma lágrima
Tudo começa no estômago. Aquela vontade de chorar, aquele desejo de soltar umas lágrimas, essa vontade vem do estômago. Um rebuliço lá dentro, como se as próprias paredes do estômago se encontrassem e se emaranhassem. Um calorzito nesse local chama-nos a atenção.
Rapidamente, essa sensação sobe para o coração. Agora não é um emaranhado de tecidos, é só um calor mais forte. Parece que o coração se está a esforçar imenso e que está a libertar imensa energia. É isso que parece. É também aí que nos damos conta das razões do nosso desejo de chorar. É a energia que nos diz o porquê. Quando nos sentimos sozinhos, ou tristes, ou desiludidos, ou mesmo felizes (também se chora de alegria), tudo isso é aí transmitido.
Se a nossa vontade chega à garganta, não há muito mais que possamos fazer para o evitar. Sente-se um nó na garganta, mas um nó com aquelas cordas grossissimas que nos arranham a garganta. A corda é tão grande que nos ocupa toda a garganta. É aí que a nossa voz se modifica. É por causa da corda que se une às cordas vocais e as faz vacilar. A nossa voz treme e quem nos ouve percebe que vem aí chuva... Ainda estamos com o nó a meio da garganta, mas, à medida que falamos ou que revolvemos na nossa mente o nosso propósito, o nó vai subindo até se emaranhar com a língua, quase que se pode ver o nó de boca aberta. Mas o nó não vai subir mais. Agora é a vez dos olhos.
Antes de mais, têm de ficar vermelhos. Não dura muito tempo, essa pintura. Logo depois, a nossa visão fica distorcida pela água que nos envolveu os olhos. Mais brilhantes que nunca, os olhos vermelhos, envoltos em água que não escasseia de entrar por eles adentro, começam a aglomerar gotículas de água nos cantos. Depressa teremos uma grande gota de água a que chamamos de lágrima. É uma acomulação de um líquido com cloreto de sódio ao canto do olho. Agora só temos duas hipóteses. A primeira, se ainda tivermos com esperança de não chorar, é aguentar essa lágrima ao canto do olho, esperar que o resto da água sece e mais cedo ou mais tarde a lágrima recuará. É difícil. Mais vale seguir a segunda hipótese. Deixar a lágrima escorrer.
Quando a água for em demasia e a lágrima for pesada, escoará pela nossa cara rosada. Se estiver no canto mais próximo do nariz, segue o carreirinho já sinalizado na nossa cara. Encosta-se ao nariz, segue ali aconchegada até às narinas. Se a nossa respiração já estiver ofegante, pode ser que entre por elas adentro mas não é um caso preocupante, não damos conta porque o nosso nariz também já foi atingido e já estaremos agarrados ao lencinho para limpar a agua que agora também escorre do nariz. Por isso, a lágrima passará desprecebida. Mas imaginando que não temos a respiração ofegante, a lágrima seguirá a caminho do canto da boca onde também poderá refugiar-se e entrar. Se isso não acontecer, seguirá caminho até ao queixo onde cairá por fim no nosso colo.
Se a lágrima se encontrar no canto mais perto do ouvido, também seguirá um caminho já escolhido. As nossas bochechas estarão contraídas para que as lágrimas saiam dos olhos. Assim, a lágrima percorrerá a nossa bochecha, limitando-a. Escorrerá encostada à bochecha, chegará ao queixo e novamente será liberta para o nosso colo (se estivermos sentados...).
Por vezes uma lágrima formar-se-á no centro do olho. E escorrerá pelo meio da nossa cara. Entrará no domínio da bochecha e segue um caminho novo, criado naquele momento. Um afluente que é o mais evidente quando nos veêm chorar. Como é mais raro, também tem um significado mais profundo, não é qualquer um que chora e que consegue que uma lágrima escorra pelo meio da sua bochecha. Por isso, vale a pena valorizar. Se não fosse a tristeza que nos manda chorar, eu até poderia dizer que encontrava alguma beleza neste rio que acaba de nascer. Chegará, como calculamos, ao nosso queixo e cairá. Por vezes, algumas lágrimas ficam penduradas no nosso queixo mas se nos mexermos muito elas acabarão por cair.
Há quem não aguente a sensação da lágrima a percorrer-nos externamente. Por isso, mal ela se acomoda no canto do olho, lançam a sua gorda mão sobre o olho e procuram retirá-la e esquecê-la. Como uma esponja. Mas as lágrimas são diferentes de uma gota de água normal. São muito maiores por dentro do que por fora. Por isso, ao contrário de uma gota de chuva, que rapidamente secamos com a nossa mão, a lágrima não secará. A lágrima será arrastada ao longo da face e molhará a cara toda. A mão,desta vez, não é uma esponja, é um pincel. Passamos a mão mais duas, três vezes sobre a cara mas a lágrima parece estar presa à pele e dificilmente a secaremos. Por isso não aconselho este metodo para quem quiser esconder a sua ferida emocional.
Quais os efeitos secundários do choro? Se tudo correr bem, será um alivio. A sensação que se foi instalar na garganta desaparecerá passado um bocado e só daí a uns tempos é que poderá voltar. Por vezes essa sensação não desaparece. Para isso eu aconselho uns bons berros. Com a idade temos a tendência para ter um choro mais silencioso e isso não é muito bom. Queremos que ninguém nos veja ou perceba que estamos a chorar, é muito infantil. Não o é! Podemos ficar muito ridículos a chorar mas é um momento naturalíssimo na nossa vida e não o devemos evitar. Por isso, se o nó nos quiser fazer gritar BUUÁÁÁ!!! então que se grite porque senão aquela sensação de desejo de choro não passará. Eu sei que depende muito da situação mas sempre que possível, não deixem a garganta contraída com medo de ser ouvida.
Durante o choro podemos ficar com a respiração ofegante, como já foi referido. Se estivermos a gritar, ou a libertarmos o ar que temos na garganta num som abafado(como muitos fazem para substituir o grito, em vão...) temos de inspirar para darmos mais folêgo a esta libertação. Muitas vezes deixamos de controlar essa respiração e inspiramos vezes seguidas até o peito estar completamente cheio. Ninguém consegue esta proeza (de respirar aos solavancos) se não estiver a chorar. Como também já referi, o nosso nariz também é apanhado. Como está no meio dos olhos, a água que está à espera de ser libertada poderá recorrer a uma via alternativa e seguir pelas fossas nasais. Não sei porquê mas estas águas que poderiam ter vindo a ser lágrimas, quando escorrem pelo nariz, chama-se ranho ou pingo. É um nome muito feio, ranho, mas enfim, eu estou apenas a escrever um ensaio sobre o choro. Todos conhecemos a expressão “chorar baba e renho” e por isso é que estou a falar nisto. Também é verdade que, quando o choro é muito grande, podemos começar a babar-nos. Mas é completamente normal, somos seres humanos e é assim que mostramos a nossa tristeza, por isso nada de ficar envergonhado com a baba ou o renho.
Por vezes também trememos as mãos que muitas vezes colocamos sobre a nossa cara para escondermos as nossas lágrimas, as nossas expressões faciais e a nossa ofegancia. Por falar em expressões faciais... Normalmente cerramos os olhos com alguma força, as sobrancelhas podem encostar-se aos olhos ou podem desenhar um “S” caído na nossa testa, as nossa bochechas sobem, a nossa boca abre-se ligeiramente e os cantos da boca viram-se para baixo. Os musculos faciais contraem-se para ajudar as lágrimas a sair.
Claro que existem choros mais pacificos, onde uma unica lágrima aliviará, naquele momento, a necessidade. Existem diferentes tipos de choros, uns normalmente silenciosos (não provocados ou abafados), outros histéricos, uns hesitantes, outros despercebidos.
Quais as razões desta necessidade de chorar? Normalmente, é tristeza. A morte de alguém, uma despedida, uma desilusão em relação a pessoas ou a si mesmo, uma descrença perante a vida e o futuro, ou coisas (aparentemente) mais superfíciais, uma derrota num jogo de futebol, uma nota mais fraca que a esperada, os nossos pais não nos querem comprar aquela goluseima,etc. Existe também a raiva, o odio que nos fazem chorar. Quando estamos muito zangados com alguém podemos libertar todas essas energias negativas com um choro, este mais silêncioso onde as lágrimas escorrem friamente pela face enquanto a nossa cara mantém uma expressão de raiva. Podemos chorar por causa de nervos ou de medo, por causa de uma dor física, uma queda, uma ferida, um osso partido, uma dor de cabeça. Só um parêntesis: gostava ainda de perceber porque choramos quando nos doi a cabeça. Cansamo-nos dessa dor mas, ao chorarmos, essa dor vai aumentar... Podemos chorar por admiração, por encantamento, pela beleza de algum cenário, paisagem, filme, música, teatro, etc. Podemos chorar de espanto, de alguma novidade que jamais pensamos ser possível (um choro com um sorriso). Também podemos chorar de rir apesar de a única parecença com os choros anteriores ser as lágrimas porque nem sequer existe aquela sensação na garganta, limita-se tudo aos olhos onde, muitas vezes, só quando temos a cara já molhada é que nos apercebemos que estamos a chorar de rir. Mas agora, pergunto, será que podemos chorar sem razão?! Será possível chorarmos apenas porque aquela sensação na garganta apareceu? Eu penso que sim apesar de não perceber bem porquê. Neste tipo de choro não existe a sensação estomacal ou no coração (se não há razão, o coração não nos poderá dizer nada...).
Para concluir, gostava de dizer umas palavras sobre o significado do choro. É uma das reações do corpo que nos une à mente. À excepção do choro sem razão e do choro por dor física, todas as lágrimas têm uma razão psicologica e, para isso, tem que haver pensamentos sobre o assunto. As lágrimas são bonitas porque contêm muita emoção e muitos pensamentos. São redondas, gordas, cheias de alma. E falam. Quando alguém vê outra pessoa a chorar poderá ficar também com vontade de chorar, apenas por ver aquelas lágrimas. Ficará também triste, essencialmente quando conhece o dono das lágrimas que observa.
O choro serve para lavar a alma. Muitas pessoas não percebem isso e evitam chorar. Percebo que não se queira chorar em público, quem nos vê não poderá perceber o porquê daquelas lágrimas mas eu aconselho todos a chorarem. E lanço uma praga a quem disse que “os homens não choram” porque os homens não são de ferro e podem ter momentos de fraqueza quando quiserem. A almofada é sempre uma boa companhia para as lágrimas... Unam-se tristes deste mundo, num choro colectivo onde as nossas lágrimas se unirão todas num rio que apagará a nossa dor de vez...