terça-feira, setembro 23, 2003

A Lareira

É noite de Inverno. É sempre Inverno por aqui. E costuma também ser sempre noite. Mas esta noite está diferente. Está tanto frio lá fora. E cá dentro. Estou no meu casarão, naquela mansão abandonada e descuidada no meio de uma floresta escura e imprevisível. Estou sozinha. É a minha casa, sou eu. Sozinha neste casarão enorme, frio, escuro. Das janelas abertas vem uma luz azulada, a mistura entre o negro da noite e o reflexo branco da lua. A casa está de um tom azul escuro. É noite e eu estou apenas com a minha camisa de dormir vestida. Sinto-me tão frágil, tão inevitável. Descalça, percorro os inumeros corredores iluminados apenas pela lua, enquanto a minha camisa de dormir esvoaça junto aos meus joelhos com a brisa que vem das janelas. Não tenho rumo, estou sozinha, não tenho motivos. Mas detenho-me no salão. Enorme, com aqueles sofás tão confortáveis que olham a lareira. Que estranho, costuma estar apagada. Não costuma haver fogo, nem calor dentro daquela mansão. Entro na sala. Quem terá provocado aquele lume? Será que é mesmo isso. Aproximo-me, muito a medo. Mas, aos poucos, esse medo vai desaparecendo. Está quente, está a aquecer as minhas canelas, frias há tanto tempo. Do azul escuro e apagado daquele salão, o laranja vivo chama-me até ele. Tão belo, aquele fogo! Sento-me em frente à lareira, não nos sofás já gastos, sento-me no chão como uma criança que acaba de descobrir o fogo. Sorrio. Quero ficar aqui, a olhar este fogo, na lareira deste casarão vazio, o resto da noite, o resto da minha vida. Aquece-me o corpo, está a crepitar só para mim. Conforta-me. Aquele som soa-me como uma canção de embalar, sussura-me ao ouvido que está tudo bem, agora não estou sozinha, aquele fogo faz-me companhia. Os lobos que habitam a floresta que espreita pelas minha janelas, juntam-se num canto único à canção do fogo. Esses uivos, que tanto me assustaram a vida toda, sempre com medo deles, que me saltassem pelas janelas sempre abertas e que me devorassem, sem eu poder fazer nada, esses uivos agora até me pareciam inocentes. Que noite tão bela! Abraço-me. Mas já algo me está a abraçar. Uma manta, que me está a aquecer ainda mais. Mas não é uma manta qualquer, pois as mantas só aquecem. Esta manta protege-me, abraça-me e contempla comigo o espectáculo que o lume nos proporciona. Estamos tão quentes. Não estou sozinha, tenho o meu fogo, na minha lareira agora laranja, tenho a minha manta que me protege do frio e não me deixa morrer aqui sozinha. Que noite tão bela! Pelo som, até parece que neva lá fora. Mas não quero sequer olhar, os meus olhos estão paralizados pela beleza da luz do fogo. Sou livre de desviar o olhar, de me levantar e sair dali, de me refugiar no meu quarto, de ver a neve a cair, de contemplar a noite escura lá fora. Mas não o faço, porque estragaria este nosso momento. Sozinha, neste casarão, sentada no chão em frente à lareira, envolta por uma manta castanha, agasalhada pelo calor do fogo, ouvindo a canção que a madeira me canta ao ouvido e que os lobos lá fora acompanham com os seus uivos. Frágil, insignificante, sozinha. Apesar disso, sinto-me protegida, sinto-me como a dona da noite, alguém preparou esta beleza toda para mim e eu nem sei quem é. Será que foi a manta que me prende os braços e que escorre pelo meu pescoço? É sempre bom sonhar. Estou feliz agora, estou a sorrir para o fogo que contemplo. Ele sorri-me de volta, estou em paz com o que me rodeia. Sei que está frio mas não o sinto, estou tão aconchegada aqui. Baloiço lentamente ao som da música da noite. É tudo tão belo, tão perfeito!
Procuro à força afastar a razão deste momento. A noite vai acabar, a lenha vai ser toda consumida e não haverá mais fogo, o frio voltará e a manta será inútil. E eu, aqui sozinha com medo do escuro, vou ser acordada pelo entrar retumbante do resto de mim, que mora usando todo o esplendor e toda o poder que aquela casa poderia possuir, que me destruirá esta felicidade momentanea. Depois de bater com a porta ao abri-la, com passos pesados e temerosos, aproximar-se-á de mim, com olhar fechado, e com o balde que se encontra ao lado da lareira (não tinha reparado nele, seráque já ali estava quando entrei?) apagará com um só movimento o fogo que me aquecia e que me confortava. Olhará para mim, com raiva, arrancar-me-á a manta, mostra-me os seus buracos, a sua insignificância e pobreza e manda-me de volta para o meu quarto escuro e frio, onde, em cima da minha cama dura chorarei para aquecer a minha almofada. Repreender-me-á por ter sonhado, por ser feliz com aquele momento. Eu tenho tudo! Vivo numa casa enorme, sou a única dona dela, posso fazer o que quiser com ela. E não me contento com isso?! Como será possível! Já o estou a ouvir... Qual a beleza de me sentar no chão quando tenho os melhores sofás a um metro de distância?! Qual é a beleza da música da noite (como a consegues ouvir?!) quando tens todos os vinis de todas as músicas belas inventadas pelo Homem?! Como te podes sentir acompanhada se não tens mais ninguém em casa?! Só este personagem é que, de vez em quando, me visita, para se certificar que se mantém tudo igual. É tão fria. Eu só tenho a minha camisa de dormir, leve e frágil. Só posso baixar a cabeça e seguir as ordens. Não tenho força, sou fraca, é um facto. Nunca mais o fogo voltará, nunca mais a manta me abraçará outra vez e os lobos jamais me cantarão novamente com carinho a música da noite. Volto ao ponto de partida.
Não estou a pensar nisto neste momento. Continuo em frente à lareira, sentada no chão, abraçada pela manta castanha, aquecida pelo fogo que (me) consome a lenha, embalada pelo crepitar da madeira e pelos uivos inocentes dos lobos cinzentos da noite. Estou feliz e vou sonhar que a noite não vai acabar nunca, e que vou sentir-me tão confortável como agora para o resto da minha vida. Não interessa que tenha tudo o que precise fora deste salão, atrás de mim. Esta mansão nunca me deu felicidade. Não como esta que estou a sentir ao sorrir para o fogo. É grande, tem tudo o que possa imaginar. Só não tem amor, não tem calor, não tem carinho. Vou sonhar que esta madeira nunca acabará de arder e que me aquecerá e dará o que eu preciso para o resto da vida.E a manta deixará de ser manta para se fundir comigo, será então a minha pele. Não me vou mover, apenas me baloiço ao som da música da noite que não acabará. Essa música que me sussura ao ouvido “Está tudo bem... Vamos fazer-te feliz... Só tu importas agora... Sorri...” E a brisa será convidada a entrar, e brincará com os meus cabelos, beijará a minha face, os meus olhos, os meus lábios, o meu colo. Estou, finalmente, a sentir-me viva. E, se acreditar muito, talvez isto nunca acabe e o resto de mim nunca baterá com a porta ao entrar no salão... E, quem sabe, silenciosamente, também se unirá a mim e finalmente nos compreenderemos e nos uniremos numa só...

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