Elas de olhos fechados, com o peito junto ao deles. Atentam ao corpo masculino, que comanda o delas suave e discretamente. Atentas aos gestos, sabem quando e onde colocar os pés, cruzar a perna, rodopiar, abrandar e acelerar. Com a ponta do pé, eles travam o delas, dizendo para descansar, sentir a música e aguardar pelo movimento seguinte. Elas, neste repouso libertam a mão que repousava sobre as costas do homem e deixam-na pairar elegantemente até regressar de novo ao seu ninho. Eles, com tranquilidade, dão o mote para seguir o passo. Ao som das guitarras e da voz castelhana, circulam pelo salão do Museu Nacional d'Art da Catalunya. São pares de várias idades, tamanhos e feitios, casuais e inesperados. Há inclusivamente um par de mulheres. A sua presença ali surpreende e transcende a experiência no museu como uma exposição temporária imprescindível. Tango argentino em casa espanhola.
sábado, outubro 31, 2015
sexta-feira, outubro 30, 2015
BCN #28
Amanhã celebra-se a castañada. Em vésperas do dia de Todos os Santos, comem-se castanhas, boniatos (batata doce) e panellets (bolinhos de maçapão tradicionais desta zona e desta época festiva).
Também no serviço se celebra a festividade. Os utentes prepararam os petiscos para a equipa provar. Não perco a oportunidade de me sentir um pouco mais catalã e provo os panellets: coco, pinhão e chocolate, foram as minhas escolhas.
Levei castanhas para comer durante o passeio da tarde, que hoje saí cedo e o tempo exigia que se aproveitem dele. Decidi subir Montjuïc, que o ambiente pedia uma vista bonita sobre a cidade. Subi a pé pelos jardins, entretida com as famílias que brincam e os cães que correm. Entrei no castelo, ouvi portugueses comentarem a imensidão do porto que de ali se observava, vi o mar, que tanto me tranquiliza, e procurei um banco com boa vista onde comer as minhas castanhas.
O banco vazio que escolhi não tinha a melhor vista, então decidi fazer companhia ao jovem que comia clementinas no melhor banco para apreciar a paisagem. Ele espreitou o que eu comia, expliquei-lhe que está na altura de comer castanhas e ofereci. Ele aceitou e ofereceu-me uma clementina de volta. Conversámos. Este jovem coreano, que pouco de inglês era capaz de falar, estava de viagem pela Europa, tendo já passado pelo meu país, que muito o encantou. Trocamos nomes, idades, profissões. Fazemo-nos companhia e trocamos ideias sobre os nossos países e este que visitamos. Convidou-me para ir ver o espetáculo da fonte de Montjuïc. Fomos e aproveitámos o resto do serão, trocando as palavras possíveis numa língua que ele pouco dominava e que eu tentava simplificar para me fazer entender. Surpreendo-me sempre com a possibilidade de encontro entre duas pessoas tão longínquas.
quinta-feira, outubro 29, 2015
BCN #27
Sinto-me só. Há dias piores que outros e hoje o dia é mais difícil.
Já passou quase um mês. Sinto já falta das minhas pessoas, das que entendem o que digo e o que deixo por dizer, que me abraçam e aquecem. Por outro lado, aqui ainda só passou um mês. As pessoas recebem bem, sorriem, integram, mas não são ainda minhas pessoas. Ainda não as vou abraçar. Estou entre dois países, um pé em cada um, tentando equilibrar-me na distância entre os dois apoios. Se sinto um pé fugir-me antes do outro assentar, o receio de cair exacerba-se. Hoje estou aqui, em desequilíbrio. Amanhã, espero, estarei um pouco mais segura.
Já passou quase um mês. Sinto já falta das minhas pessoas, das que entendem o que digo e o que deixo por dizer, que me abraçam e aquecem. Por outro lado, aqui ainda só passou um mês. As pessoas recebem bem, sorriem, integram, mas não são ainda minhas pessoas. Ainda não as vou abraçar. Estou entre dois países, um pé em cada um, tentando equilibrar-me na distância entre os dois apoios. Se sinto um pé fugir-me antes do outro assentar, o receio de cair exacerba-se. Hoje estou aqui, em desequilíbrio. Amanhã, espero, estarei um pouco mais segura.
quarta-feira, outubro 28, 2015
BCN #26
Aqui, és quem tu quiseres.
No metro, um rapaz de vinte e poucos anos salienta-se dos restantes passageiros. Sobressai o seu cabelo comprido, branco pela descoloração agressiva sobre um cabelo negro ainda nas pontas, que cai como uma cortina sobre o caderno apoiado sobre o joelho rasgado na indumentária escura. Concentrado no seu desenho, levanta intermitentemente o olhar para confirmar as linhas da carruagem. Observa a carruagem, não quem a habita.
Na estação seguinte entre um grupo de jovens, com roupas tão duras como as deste que nem os vê. Elas arriscam um pouco de cor, mas o rapaz que as acompanha mantém a monocromia. Alto, curvado para caber no círculo de amizade ali criado, mostra o seu sorriso desalinhado. De dentro da sweat escura saem umas mãos compridas, brancas, magras, como a sua face. Contrasta-se. A fragilidade do corpo protege-se com a afirmação da roupa que o veste.
No metro, um rapaz de vinte e poucos anos salienta-se dos restantes passageiros. Sobressai o seu cabelo comprido, branco pela descoloração agressiva sobre um cabelo negro ainda nas pontas, que cai como uma cortina sobre o caderno apoiado sobre o joelho rasgado na indumentária escura. Concentrado no seu desenho, levanta intermitentemente o olhar para confirmar as linhas da carruagem. Observa a carruagem, não quem a habita.
Na estação seguinte entre um grupo de jovens, com roupas tão duras como as deste que nem os vê. Elas arriscam um pouco de cor, mas o rapaz que as acompanha mantém a monocromia. Alto, curvado para caber no círculo de amizade ali criado, mostra o seu sorriso desalinhado. De dentro da sweat escura saem umas mãos compridas, brancas, magras, como a sua face. Contrasta-se. A fragilidade do corpo protege-se com a afirmação da roupa que o veste.
terça-feira, outubro 27, 2015
BCN #25
A presença de cães diz muito sobre uma cidade. Por exemplo, em Paris, são todos muito pequeninos, como as pequenas casas onde os seus donos habitam no centro da cidade. Aqui em Barcelona, imagino as casas maiores (as que conheço até agora, são realmente mais espaçosas que as parisienses que visitei) para estes cães sorridentes de grande porte.
Barcelona passeia muito os seus cães. Fazem companhia junto aos donos enquanto bebem uma caña numa esplanada qualquer. Acompanham a trote a velocidade da bicicleta onde segue o dono. Recebem beijinhos na cabeça quando, pequeninos, vão ao colo da dona. Por vezes até passeiam aos pares e correm mais alegres. Vão fazendo as suas necessidades pela rua,apesar de não se encontrar nenhum dejeto canino onde tropeçar.
Por vezes entram momentaneamente nos estabelecimentos comerciais, mas, caso não seja possível, Barcelona também se preparou para essas circunstâncias. Uns pequenos bengaleiros à porta de algumas lojas avisam que o seu animal pode esperar ali. E ele espera. Por vezes um pouco mais impaciente. Como o Simba. Assim que viu a dona na fila da caixa, já quase quase de novo ao pé dele, ladra-lhe. Então, Simba, que se passa para hoje estares assim?, pergunta a senhora da caixa. O Simba, com os seus olhos meigos entre o pêlo comprido preto, com o seu grande corpo algo inclinado para ver melhor a dona, ignora a pergunta e repete o latido. Oh, Simba, já vou, tem calma, responde-lhe a dona. É assim, já me viu, pronto, agora não se cala... Auf!
segunda-feira, outubro 26, 2015
BCN #24
Um dia inteiro à espera que alguma coisa aconteça para que o mais interessante do dia tenha sido o estender da roupa.
Ainda não entendi o tempo de Barcelona. Ando atenta ao boletim meteorológico do meu dispositivo móvel, que deixa sempre para amanhã o inicio da chuva. De facto, apesar de avisar que nos próximos dias irá chover, no próprio dia muda de ideias: afinal ainda não será hoje, afinal até faz calor, chuva agora só daqui a dois dias.
Hoje foi o dia em que a previsão de aguaceiros se manteve mas que, ao longo do tempo, não a vi concretizar-se. Confiante de que, mais uma vez, é p'ra amanhã, fui estender a roupa. Satisfeita com a lide doméstica, vim desfrutar do meu serão para junto das pessoas que se aproximam através deste ecrã. Que bom é sentir-vos tão perto. Que bom sentir-me bem em casa, em boa companhia, confortável, a ouvir a chuva lá fora... Espera... Ala, que se faz tarde, chove a potes e ainda agora acabei de estender a roupa!
E amanhã, levo botas?
domingo, outubro 25, 2015
BCN #23
Entra uma banda de percussão que dá o ritmo inicial. Ali, numa antiga estação de comboios, entretanto transformada em polidesportivo, vai dar-se início à campanha eleitoral para as eleições de 20 de dezembro. No cartaz que enquadra o palco lê-se "el canvi no s'atura", não se pode parar a mudança. Ali se junta a esquerda alternativa, que, alguns meses antes, se coligou em nome de uma nova Barcelona e conseguiu a vitória. O início do início, lembrou o primeiro orador, antes de ser bem aplaudido.
Das cinco personalidades que se encontram em palco, apenas um se destaca pela idade mais avançada. De resto, o painel é composto por gente jovem, discreta, casual. E maioritariamente feminina. Porém, é um homem que abre as hostes, referindo-se, em certo momento, que se encontravam em solidariedade com Portugal, onde se luta para mostrar que o povo é quem mais ordena.
Entre os oradores, há um especial e caloroso entusiasmo com a atual presidente de Câmara de Barcelona. Conta-me a minha amiga espanhola, com brilho nos olhos, que o seu discurso em 2012 no parlamento foi incrível, que é uma pessoa com luta intensa contra a vida forçosamente hipotecada das pessoas. Para além desta mulher, uma outra marcante. Uma enfermeira que, em conjunto com o seu marido jornalista, denunciaram a alta corrupção nos serviços de saúde espanhóis, tendo sido acusados de difamação, mas saudados pelos espanhóis. Uma terceira mulher, jornalista especialista no Médio Oriente, vem falar-nos sobre a crise dos refugiados e relembrar a humanidade destas pessoas.
Fala-se em castelhano (o esperanto ibérico, como apelidou o historiador galego) e em catalão. A língua regional é mais difícil de acompanhar, mas sabe-se bem do que falam. Há gente jovem (adolescentes até) e menos jovem por aqui, todos aplaudem à mudança, à humanidade e humildade, ao fim da corrupção. Aqui pretende-se fazer história e que se comprove que sim, que é apenas o início. Aqui há esperança.
sábado, outubro 24, 2015
BCN #22
Demorámo-nos logo no exterior para contemplar cada detalhe deixado preciosamente imperfeito porque, como dizia Gaudí, a natureza não tem linhas retas. Entrei tão distraída com a riqueza do exterior que tive de levar a mão ao peito quando abri os olhos para o interior. A grandiosidade do espaço faz-nos encolher ainda mais e sentimo-nos um pequeno ponto. A catedral aponta-nos para o céu, onde um triângulo laranja simboliza Deus. Tudo é alto, tudo é imponente, tudo é preciso e precioso. Aqui sentimo-nos acolhidos, pertencemos a esta fantasia modernista.A um canto, a luz azul é tão intensa que parece palpável, no canto oposto é o vermelho que queima. O nascimento e a paixão de Cristo, dizem. E ali está, suspenso, na cruz, como nunca o vira antes, sobre o altar.
Esta é a Sagrada Família, ainda inacabada. Uma televisão mostra como deverá ficar a obra após a sua conclusão. Se hoje me espanto, o que sentirei em 2026?
sexta-feira, outubro 23, 2015
BCN #21
Esta é a Barcelona de que nos avisaram. Fervendo turistas. Diz-me ela, que já percorreu mais ruas nestes dias do que eu em toda a estadia, que se ouve principalmente inglês, francês e brasileiro. Seguimos na corrente multilinguística para mais um ponto chave da cidade: o Parc Güell.
Salienta-se o trencadís, a arte em mosaico que dá nova vida ao azulejos. A cor das obras alegra o dia e combina com o céu limpo e caloroso de hoje. Os dois edifícios da entrada dão o mote. De um lado, uma fila significativa aguarda para entrar nas salas pintadas de azul intenso que miramos cá de fora. Do outro, torre esguía sobressai de mais um telhado colorido, curvo, surpreendente pelos acabamentos alegres.
Em frente, subimos a escadaria para encontrarmos o maior símbolo de Barcelona: a salamandra. À vez, os turistas aproximam-se para tirar a sua fotografia. Cada qual com a sua pose, ora com a mão no dorso do animal, ora arriscando o interior da boca, ora simplesmente sorrindo ali ao lado. Junto à salamandra está um guarda que, após alguns minutos a observar a cena, me parece já fazer parte do próprio quadro. Atento e discreto, torna-se visível quando alguém se encosta. Pode tocar, mas não se encoste! Pergunto-me se não merecerá também ficar numa recordação fotográfica, tal é a sua eficiência e tolerância ao aborrecimento da função.
Subimos até ao miradouro onde se tiram todas as selfies. Daqui podemos enquadrar os dois edifícios da entrada com a longitude da cidade e o mar, ao fundo. Tudo com um parapeito curvilíneo e brilhantemente colorido. Todos saberão onde estivemos.
quinta-feira, outubro 22, 2015
BCN #20
Vamos jantar fora, provar umas tapas. Escolhemos um restaurante perto de casa onde nos recebem em inglês, certamente por entenderem do nosso aspeto turístico que não estamos no nosso país. Pois bem, vou descansar um pouco o meu castelhano e vamos então ler o menu e fazer o pedido numa língua mais internacional. Assim o fazemos até que, para esclarecer uma questão, trocamos umas palavras em português antes de prosseguir o pedido. O senhor que aguardava pelas decisões finais, desiste então do inglês e responde-nos em castelhano. Talvez seja o mais sensato, imagino que o pensem, falar com os hermanos portugueses em castelhano, que nos percebem tão bem, do que esforçar o nosso inglês, que nos sai com tanta dificuldade.
quarta-feira, outubro 21, 2015
BCN #19
Estou aqui para conhecer o total funcionamento deste serviço. Assim sendo, vou também conhecer a sala de redução de danos. Aqui podem-se fazer consumos em maior segurança, com material esterilizado, com supervisão de profissionais que podem identificar situações de emergência e atuar de imediato. Aqui reduz-se o dano do consumo perigoso.
Fui, então, assistir a um consumo. Poderia ser uma injeção como qualquer outra (insulina, quiçá), mas não é. Apesar do ambiente estéril e hospitalar onde nos encontramos, não esquecemos do que se trata. E, não sei porquê, por vezes o corpo reage.
Sabia que não era uma visão tolerada por muita gente. O consumo já tinha acontecido, esperava-se pelo efeito e eu pensava que o pior já tinha passado. Pois foi então que o efeito, afinal, começou a fazer-se sentir em mim. Uns suores que me subiram até à cabeça, uma fraqueza a chegar, umas dormências e entendi que teria de sair dali rapidamente. Vagarosamente consoante a sintomatologia me permitia, saí da sala. Ainda ouvi alguém vir até mim de braços estendidos e deixei de ver e ouvir. Por um instante, ainda me perguntei como tinha chegado àquele sono bom, de descanso, antes de voltar a mim e perceber que não estava de facto a descansar no conforto de uma casa como gostaria, mas sim que acabara de ter uma reação vasovagal no serviço. Já lá estava comigo um enfermeiro com o esfingomanómetro e umas bolachitas e a médica, a que me estendera os braços e me encaminhara para a cadeira onde estava, que me dizia que era perfeitamente normal, que também lhe acontecera da primeira vez. Diz o enfermeiro, sorrindo, que agora tenho de voltar a assistir muitas vezes para não ficar com o trauma. Deixe estar, por agora ficamos assim.
terça-feira, outubro 20, 2015
BCN #18
A P. põe música para animar a malta e deixa o corpo dançar um pouco ao som de yo quiero bailar, toda la noche, baila baila bailando hey! Observo e sorrio, pelo que me explica que são músicas típicas das fiestas de verão espanholas. Lembro-me das portuguesas, mas adio para outra altura a partilha das músicas de tropical urbano do nosso país.
O E. chega e pergunta se tenho encontrado muitas diferenças entre Portugal e Espanha. Confesso que não, talvez mais no horário das refeições. Explico que no meu país é mais comum jantarmos às oito. Qué?!, pergunta a P. num pulo da cadeira. Diz o E. que cá é mais por volta das dez. A P. confessa que, no seu caso, lá mais para as onze e picos, que seria impensável jantar às oito. Até porque dá aulas de teatro durante a tarde, depois de sair deste trabalho que já lhe conhecemos. Assim se aproveitam bem as horas que um dia tem.
segunda-feira, outubro 19, 2015
BCN #17
Vejo muita gente pela cidade com cartazes informando que estão desempregados, a viver na rua, que têm fome. Por vezes, alguém entra no metro e pede ajuda. Mas nunca vira alguém pedir assim.
Um jovem entrou na carruagem e coloca-se em posição de ataque no inicio do corredor. De base alargada, voz potente, inicia o seu discurso após o arranque do engenho. Sou um jovem de 24 anos, sem emprego, e por ali seguiu no discurso sem que eu lhe tenha conseguido entender tudo. Pedia ajuda, que precisava. E, para isso, dispunha-se a vender maços de lenços. Assim que termina de citar o texto que tinha preparado, pega nos maços e dirige-os para o seu público. Porém, fá-lo de forma brusca, com arrogância no rosto, com a rapidez de quem não tem fé na bondade alheia e que ofende o outro por não permitir sequer uma resposta (positiva ou negativa) por parte de quem aborda. Não?, não?, não? Vira-se para trás e prossegue, aponta rispidamente o maço para cada pessoa que o rodeia e num instante decide avançar para a carruagem seguinte. Pelo caminho dá uma bofetada num poste que por ali se encontrava. A zanga não deverá permitir a aproximação e empatia de muita gente.
sexta-feira, outubro 16, 2015
BCN #16
O aeroporto de Barcelona é um centro comercial multilingue. Os viajantes de todas as origens e destinos confluem na fila de mais um restaurante da mítica cadeia de fast-food. Aqui, o meu jovem castelhano é preterido em favor do inglês omnipotente pela catalã que recebe o meu pedido.
Para que não seja apenas mais um entre muitos aeroportos megalómanos, procuro por tapas. Porém, entre as lojas internacionais reproduzidas milimetricamente, as tapas parecem uma ideia bizarra. Encontro então, a um canto bem recostado, um restaurante que cumpre os meus requisitos. Pinchos. Depois de percorrer a bancada, lá decido qual provarei hoje. Sento-me junto a uma mesa onde se fala castelhano. Porém, creio que é a primeira vez que estas vozes se cruzam. Eu vou para Madrid, e tu? Hoje vou salir de copas. Dónde eres? Como se o país disperso se restabelecesse naquela mesa onde se celebra a fiesta à espanhola.
quinta-feira, outubro 15, 2015
BCN #15
Combinámos encontrarmo-nos por lá. Contava chegar mais cedo e arranjar lugar, visto que me tinha avisado que deveria estar muita gente. Ainda duvidei, pois a maioria das pessoas que eu tinha convidado para me acompanharem não davam grande importância à figura. Houve até quem não soubesse que se tratava do ex-ministro grego e, assim sendo, não entendesse sequer o significado da sua conferência. No entanto, em Barcelona havia gente suficiente com ganas de o ouvir. De tal maneira que, assim que cheguei ao Born, fiquei impressionada com a fila que já se fazia. Seria mesmo para ouvi-lo? Após confirmá-lo com o segurança, fui em busca do fim da fila. Cruzei a primeira esquina do edifício, já depois de uma longa fachada preenchida com gente, e não lhe vi o fim. Cheguei à segunda esquina e nada de ver o fim da fila nas traseiras do edifício. Seria possível? Impressionada com a multidão, e depois de umas fotografias para documentar este fenómeno, percorro toda a distância da traseira do edifício, para encontrar mais uma esquina com gente e uma quarta parede repleta de interessados. Precisamente antes de cruzar a quarta esquina, encontro o fim da fila. Vou para o meu lugar e apercebo-me que, muito pouco tempo depois, já a quarta esquina tinha sido cruzada. É-me agora impossível saber onde vai terminar.
Aos poucos avançamos, sem grande fé de que toda esta gente caiba no edifício. Encontro-me nas traseiras do edifício quando surge um funcionário que nos confirma que, dali para trás, já ninguém entrará. Corro então para tirar as teimas... afinal onde terminava a fila? Volto à fachada do edifício. O circulo já fechara e, paralelamente ao comboio de pessoas prestes a entrar, a fila seguia até à primeira esquina, não chegando a cruzá-la novamente.
Incrível. Todas estas pessoas, de todas as idades e feitios, dispostas a esperar mais de um diâmetro de um Centro Cultural de Barcelona para ouvir Varoufakis. Uma voz contestatária, polémica, agitadora. Há muita gente que se agita. Há muita gente que contesta. Há muita gente que espera por uma voz que lidere. Será?
quarta-feira, outubro 14, 2015
BCN #14
Fui, infiltrada, a uma aula de Psiquiatria. Asseguraram-me que não haveria problema, apesar de ser reservado para os internos de primeiro ano da Catalunha, e que seria dada em castelhano. Muy bien, vamos então. Qual não é, pois, o espanto, quando logo no início a médica que nos dará a aula pede para nos apresentarmo-nos e dizermos o que esperamos da aula. Vale, o meu castelhano há-de ser suficiente para me safar desta. Chegou a minha vez e lá me apresentei e disse, com os verbos simples que conheço, que quero saber um pouco mais sobre o assunto. A médica passa ao seguinte, mas não me livrei de muitos corpos a virarem-se para trás para observar a proveniência, imagino eu, de sotaque tão diferente.
Perguntou se poderia dar a aula em catalão, mas felizmente outra pessoa pediu para ser em castelhano. Tão fácil assim seguir a aula, é só preciso uma pequena atenção para compreender o que é dito. Até que alguém interrompe e faz uma pergunta. Não a ouvi bem, mas sei que a partir de então deixei de entender tão claramente o que a professora dizia. Um esforço maior de atenção, umas silabas que não consigo encaixar em palavras com nexo, ligações entre expressões técnicas que não sei o que significam. Será que mudou para catalão ou é de mim?
Seguimos para intervalo. Aproveito para perguntar se, agora no final, a aula estava a ser em catalão. Estava? Nem me apercebi, não sei, diz o meu colega. Se calhar estás mais cansada, diz.
Regressamos à aula e regressamos a uma linguagem que me custa seguir. Diz ele, em surdina, tens razão, é catalão. Entretanto, como se uma luz se acendesse num quarto na penumbra, começo a entender de novo. Castelhano! Seguimos até nova pergunta em catalão e regressa o idioma mais difícil... Mas, de novo, a luz! E regressa a minha compreensão pelo discurso. Seguimos assim até ao final da aula, ficando eu a saber que me basta fiar na minha capacidade de perceber o que é dito para distinguir uma língua da outra. Porque, eles, eles nem dão conta da troca.
terça-feira, outubro 13, 2015
BCN #13
Vão encontrar a P atrás do balcão. Rapidamente vos escancará o seu sorriso e dará os bons dias. A sua juventude é especialmente notória no seu espírito. Apesar de estarmos num serviço de histórias e vivências pesadas, a leveza com que passa os dias surpreende. Mas é bem recebida. Em alguns tempos mortos, vou para a receção receber um pouco dessa alegria. La portuguesa!, exclama, na sua voz sempre bem projetada e que ocupa todo o espaço sonoro permitido naquela divisão. Pergunta como me tenho sentido em terras catalãs. Conto-lhe que bien, sorrio de volta. Comento que amanhã deverei conseguir uns bilhetes gratuitos para a Sagrada Familia. Parece-lhe muito bem e comenta que é de Barcelona, mas que nunca lá entrou. Digo-lhe, então, que deveria tentar arranjar os bilhetes também. Ri-se alto, confirma. Entretanto, alguém chega e pede atenção do outro lado do vidro e eu prossigo a conversa com o JM. Porém, é impossível. A P preenche novamente o espaço sonoro com a sua voz catalã. É absolutamente imperceptível aquilo que o JM acabou de me dizer, duvido até que tenha saído algum som da sua boca. Sorrimos, olhamos para a P e aguardamos que resolva a situação. Que voz poderosa.
segunda-feira, outubro 12, 2015
BCN #12
Saio com um sorriso e mais tranquila. É aqui. É para aqui que tenho de vir. O aperto dos últimos dias tinha de ser combatido e agora está melhor. Esta é uma casa familiar, pronta para receber gente amiga, uma casa que convida à conversa, à partilha, ao respeito. Uma casa quente. A forma como me abrem a porta e me convidam a sentar no sofá, como se fosse já família, demonstra a diferença entre as duas casas. Onde estou, as restantes habitantes não se entendem, o lixo acumula, a gordura recobre a cozinha (as gavetas, o frigorífico, as paredes), não aqueço nem o coração nem a comida. Mais acima na rua, duas pessoas conversam comigo com um sorriso transparente e convidam-me a ficar. Não há duda, no próximo mês estarei melhor.
domingo, outubro 11, 2015
BCN #11
Vim para um jardim ler. Lembrei-me de visitar o Parc da Ciudadella, que ainda não conhecia.Vim a pé, para aproveitar este sol que não tardará a ser coberto. Como a caminhada foi longa, sento-me logo junto à entrada do parque, para descansar e ler. Adianto algumas páginas, até que o som do jardim fala mais alto. Oiço o ritmo da percussão e vou em busca da origem. Por entre alguns montes verdes, descubro um grupo de jovens que tocam djambé em cadência acelerada. Não me detenho porque entendo que estas são apenas as boas vindas. Entre algumas árvores há quem se tente equilibrar numa fita em tensão enquanto outros lançam massas em malabarismos certeiros. Uma criança brinca de cabeça para baixo no pano largo que desce do ramo alto de uma árvore. Oiço outro ritmo mais à frente e encontro um circulo de gente de mãos dadas, sapateando e dando ritmo ao que improvisa antes de passar a vez ao do lado. A cascata monumental observa o grupo e é fotografada pelos turistas que a descobrem. Avanço um pouco mais e encontro um lago com barquinhos repletos de famílias. Alguém me pede para me desviar, que estou a mais no enquadramento da fotografia, e sorri-me agradecendo a compreensão. Sigo caminho e encanto-me com a familiaridade deste jardim. Está tão habitado.
sábado, outubro 10, 2015
BCN #10
Foram os sons que me acordaram no bairro da Gràcia. Ainda cedo, ouvia já o movimento das pessoas, das lojas que vão abrindo, das famílias que saem à rua, das crianças que brincam. Na Plaça Virreina, em frente à igreja de Sant Joan, um círculo de escuteiros brinca ao lencinho e a juventude preenche a esplanada do café. Seguindo para oeste, descubro o mercado da Libertat, que se encontra já animado, com um cheiro a mar que me lembra o meu país. Percorro as bancas de peixe fresco, marisco variado, carnes vermelhas. Queria uma cozinha melhor para, quiçá, me aventurar a experimentá-los cá. Sigo de novo para este, onde a Plaça del Sol é vigiada por ancianos, que ocupam os bancos disponíveis em redor da torre do relógio e onde apreciam o bom tempo e a companhia. Numa varanda no topo da praça, uma mulher arruma as suas plantas ensolaradas e aproveita, certamente, para petiscar deste sol quente de outubro. Para o aproveitar também, decido descer até ao mar.
É dia 10 de outubro e em Barcelona banha-se no Mediterrâneo. As praias estão cobertas de costas ao léu, toalhas estendidas, gente imensa. Entre os que se bronzeiam com o sol de outono circulam outros que anunciam pareos e mojitos. Nos degraus do passeio, senta-se quem não tem ou coragem ou indumentária para se aventurar na areia. Ao nosso lado, uma banda toca folk e agita-nos o corpo. O céu limpo, o calor, o tempo livre. Descanso.
sexta-feira, outubro 09, 2015
BCN #9
Ao fim de uma semana, a conversa coloquial melhora, já se ri em conjunto e, no final do dia, recebe-se um convite para ir tomar algo depois do trabalho. Aceito.
Sigo com mais dois colegas para a Barceloneta, lugar que me deram à escolha, visto ser ainda estrangeira nesta cidade algo desconhecida. Caminhamos junto à praia, coberta de gente acalorada, e conversamos, sorridentes. Diz-me o S. que é muito perguntador. Quer saber de mim, quem sou, do que gosto. O M. brinca com as minhas respostas e a conversa flui, como se não houvesse uma língua ainda desconfortável para mim. Procuramos por crepes e chocolate, que cai sempre bem um reforço seretoninérgico no final da semana. Sentamo-nos, comemos, conversamos. Aos poucos, criam-se novas amizades que cruzam fronteiras e harmonizam a linguagem. Hoje sinto-me um pouco mais em casa.
quinta-feira, outubro 08, 2015
BCN #8
Entrou com a mãe, que ela saberia de tudo, não haveria problema em estar presente. Cabisbaixo, conta a sua história. Tem estado abstinente nos últimos meses, desde que ingressou a associação, mas teve uma recaída. Mostra-se culpabilizado e triste com o aparente retrocesso, que diz ter sido apenas uma vez. Lá na associação não acreditam, pedem para que refaça a carta das culpas. Não compreende como é que a sua honestidade não é valorizada e compreendida. Mas o que mais lhe custa, diz-nos, é estar sozinho. Não tem amigos. Todos se afastaram ou apontam agora o dedo categorizando-o com os comportamentos de um passado que diz que já não lhe pertence. Quer ser alguém novo, limpo, capaz. Quer ter alguém a seu lado. Quer ajuda. Chora e comenta, "sou muito sensível, pode escrever aí nos seus apontamentos".
quarta-feira, outubro 07, 2015
BCN #7
Acordo de madrugada com ruído em casa. Apercebo-me que as minhas colegas de casa estão a conversar, provavelmente no corredor, que fica já ali junto ao meu quarto. Não distingo claramente o discurso, mas é evidente que não são horas para conversas. Confirmo-o, são três da manhã. Apercebo-me que tom não é tão amigável como de início me pareceu. A certa altura, uma delas recolhe-se no seu quarto e a outra, ao entrar no dela, atira com a porta, agredindo o respeito pelas restantes pessoas da casa. Sai de novo do quarto e bate furiosamente na porta do quarto da outra colega, dizendo que está fully awake e que quer conversar. Isto não acabará? Cessou pouco depois e lá consegui adormecer de novo.
O conflito acompanhou-me o dia inteiro. Carreguei-o num nó epigástrico que me faz questionar. Cheguei ainda há pouco a esta cidade e procuro um espaço de paz e conforto para onde possa voltar ao final do dia. Hoje, esse regresso inquieta-me. Não sei como será nos próximos dias, semanas, meses. Como são afinal estas pessoas? Onde fico eu no meio do conflito?
Hoje é dia de aflição.
terça-feira, outubro 06, 2015
BCN #6
Não acreditou em mim, doutora. É assim, basta eu dizer que tenho esquizofrenia e as pessoas afastam-se. E senti-me mal ali, não confiam em mim. Vou para lá para deixar de fumar, mas assim que digo que tenho esta minha doença, eles não acreditam que eu seja capaz. E eu que já deixei de beber e que perdi todos estes quilos... Não sei qual é a experiência que têm com outros como eu, mas não é justo. Se eu estou ali é porque quero mesmo parar. Porque falaram assim para mim, como se fosse uma criança prestes a portar-me mal? Mas eu vou voltar lá, sim, doutora, a vontade é não ir, mas eu vou. Confio em si, que me diz que não tem a ver comigo e que é importante manter o seguimento, eu sei, e irei lá mostrar que sou capaz. Quero mesmo isto, doutora. Agora estou bem, estou muito melhor, e quero fazer isto por mim. Obrigada, doutora, até à próxima.
segunda-feira, outubro 05, 2015
BCN #5
Não vai ser assim tão fácil... Não quer dizer que não haja simpatia, fui bem recebida, com um sorriso por todos, com lembranças de que estão disponíveis para o que for preciso, para perguntar o que for necessário. Levam-me a almoçar, introduzem-me no grupo e na conversa, mas afinal...
Um mês intensivo não é suficiente para saber castelhano. Muito menos quando o castelhano é falado a vários sotaques regionais ou misturado com uma pitada de catalão (será? ou apenas uma razão que procuro encontrar para, por vezes, não entender nada mais que o tema geral da conversa?). Aliás, não precisa de ter pitada de catalão, basta a velocidade hiperativa da conversa e da coloquialidade do discurso, as expressões idiomáticas e os trocadilhos culturais que desconheço. Vale-me a linguagem técnica, que torna todo o discurso em contexto de trabalho eficaz e o bastante para me saber competente neste lugar. Aguardo, então, o tempo que me dizem ser essencial para que tudo seja mais fluido. Até lá, vou aprender bem mais do que conhecimento médico. Como diria Abel Salazar, "quem só sabe de medicina, nem de medicina sabe".
domingo, outubro 04, 2015
BCN #4
Hoje há eleições no meu país e eu aguardo apreensivamente pelos resultados. Em casa, noutra língua, discute-se o que está em jogo. Explico a minha visão dos últimos quatro anos, da situação atual, das previsões das sondagens, da minha ideia sobre o que acontecerá num caso e noutro. Ela ouve, acena, compreende, associa aos desenvolvimentos politico-partidários e económicos do país onde nos encontramos e partilhamos preocupações. A certa altura falamos em ordenados, no dinheiro que se ganha... Earn! Earn! Como? Fiquei um pouco confusa com a interrupção do discurso, mas rapidamente me esclarece. You earn money, you don't win it. Comenta que a surpreende esta visão ibérica do dinheiro, da forma como usamos a expressão "ganhar dinheiro", como se fosse uma sorte o termos. É mentira, trabalhámos para o merecer. You earn it. O que será que esta lacuna linguística fará da nossa forma de vermos o nosso dinheiro e a forma como é manipulado?
sábado, outubro 03, 2015
BCN #3
Adormecemos ontem com a decisão tomada. Pela manhã, fizemos as malas, mudámos, limpámos, arrumámos. Como o dia não pode ser só feito de angústias domésticas, seguimos para um passeio pela cidade.
A pé, repetimos, em sentido inverso, a caminhada imensa dos dias prévios. Passeig da Grácia, Plaça de Catalunya, Les Rambles. Virámos à esquerda, para a Plaça Reial e decidimos embrenhar-nos no Bairro Gótico, que ainda não conheceramos. Pela Carrer de Ferran, chegámos à Plaça de Sant Jaume, onde, em frente à Câmara Municipal um grupo se manifestava em prol dos refugiados. Assim o julgamos, visto que a língua catalã não nos é tão transparente como gostaríamos. Enquanto fotografava um edifício cuja cor alegre e textura distinta das paredes sobressaía do resto da praça, reparei que, ao canto da imagem, na ruela que torneava este edifício, uma ponte refinada introduz o Gótico do bairro a que pertence. Seguimos, então pela Carrer del Bisbe, em direção à música erudita que ouvimos. Encontramos então, a Catedral, enfeitada com uma orquestra de sopro que nos convida a aproximar-nos. E aproximamo-nos até entendermos que a música serve um propósito maior. À frente da orquestra, vários circulos se formaram. As malas amontoam-se no centro do círculo, as pessoas dão as mãos e os pés dão o ritmo à união. Saltitando, fletindo, cruzando o pé delicadamente sobre o outro, calcanhar no chão, calcanhar no ar, braços em cima e em baixo, assim dançam ao ritmo dos sopros. São pessoas de todas as idades, mas sobressaem as personas mayores, os que carregam história e tradição e, provavelmente, um sangue catalão convicto. É, pois, o que imagino que carregam estes movimentos coordenados, surpreendentes, uníssonos. Uma cultura.
sexta-feira, outubro 02, 2015
BCN #2
E começa a caça à habitação. Da lista interminável de opções, filtrámos por valores e por zonas, repescámos o que o olho recomenda e começámos hoje as visitas. Com apreensão e algum entusiasmo, dirigimo-nos à primeira agendada.
Estamos no ponto nevrálgico da cidade, não muito longe do mercado que visitámos na véspera, numa perpendicular à avenida mais turística da cidade. Nas costas dos japoneses que fotografam o Palácio Güell está a porta que nos aguarda. Não inspira confiança, mas não é certamente o exterior que definirá o sítio. Entramos e quiçá não será também o hall de entrada do edifício, escuro, frio e abandonado, que o definirá. A porta abre-se e talvez agora começaremos a entender que tudo isto define esta casa. Casa? Por momentos, no corredor comprido, alto e descaracterizado que percorro após ultrapassar a porta, pergunto-me se será já isto a casa ou apenas um pátio com um teto e paredes longas que nos leva à casa real. Não, é mesmo isto. É o prato com espaguete verde e meio bife no chão a um canto da divisão, são as paredes que delimitam pequenos espaços retangulares onde cabe um colchão e nenhuma janela, é o abandono, o silêncio e a marginalidade que aparentam governar o ambiente. São os cães no quintal, que nos cumprimentam e pulam atrás da porta envidraçada, que nos dão algum alento ao espírito, rapidamente abafado pela ameaça do chinelo que o jovem lhes oferece. Já que ali estava, aceitei percorrer toda a decadência como se de uma visita de estudo se tratasse. Há mais um quarto, com janela, mas esta rua tem muito ruído à noite, diz-nos. Os olhos envidraçados, a lentidão na conversa e postura longínqua completam o registo toxicómano de todo o espaço. Agradecemos a simpatia e saímos.
Diz ela, pálida, inexpressiva, demorada, assim que nos encontramos de novo junto aos turistas japoneses, "nem sei o que dizer"...
quinta-feira, outubro 01, 2015
BCN #1
Deve ser isto, só pode. Entrámos por gostarmos de mergulhar nestas bancas de fruta fresca e queijo forte, sem saber ao certo que era ali. Rapidamente percebemos que estavamos na Boqueria, pela inundação de pessoas de câmara em punho, selfies a serem tiradas, presunto a ser provado e dinheiro a sobrevoar as bancas. Cheira a especiarias de um lado, impressionam os legumes e frutas do outro. Mais à frente, torna-se difícil sair da frente da montra sem levar um (ou mais) dos queijos expostos. Perdemo-nos deliberadamente nas ruelas do mercado. Andamos às voltas tentando absorver todos os sabores com recurso à empatia pelo deleite dos outros. Observamos atentamente para descobrir o único e excecional. E vemos então a montra que mais ficará na memória, pela crueza dos produtos. A cabeça da cabra, de língua de fora e os olhos espantados, ao lado de miolos embalados numa caixinha de plástico. Reconhecemos ainda testículos, um focinho de porco, estômagos, corações e outros que tais que as nossas aulas de anatomia nos permitiram reconhecer. Bem sei que em terras lusas não faltam destinos para estes repastos, mas vê-los assim, crus, limpos e inteiros, surpreende.
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