terça-feira, abril 18, 2006

para Inês

Já lhes oiço a respiração compassada. Não admira, depois do dia de hoje o sono toma conta do corpo bem depressa. Não houve tempo sequer de soltar as cortinas, a escuridão é igual, mas um brilho frágil faz-nos companhia na sala. A lua espreita-nos. Vejo-a daqui, lá fora e no alto, gorda e amarelada, incendiada pelas luzes da nossa Terra. Não é lua-cheia, mas está a caminho. Está lua-botão. Sim, é isso, um botão redondo a sair da casa a que pertence no manto negro de veludo, salteado de estrelas pequeninas mas formosas. Um botão.
O sono ainda não me encontrou, por isso, sento-me para que me veja. A luz do botão aponta-me para dentro e ilumina-me a casa. Todos dormem, espalhados pela sala. O Pedro, no sofá, dorme de boca aberta e de mão pendente, a pouco mais de um palmo da cara do Zé. Talvez por isso ele esteja a dormir de testa franzida. Mais ao fundo, o casalinho dorme bem junto, testas juntas. A meu lado, a Ana parece uma boneca, bem enrolada no seu saco-cama, só com a cabecinha de fora e um sorriso discreto a decorar-lhe o rosto. Aqui perto ainda vejo os restantes dois vultos, mas estão tão aninhados que não os distingo. Adoro vê-los dormir.
Com cuidado para não acordar ninguém, serpenteio-me para fora do meu saco-cama e, em pezinhos de lã, saio para a varanda. Está fresco, a brisa marota sopra-me para dentro da camisa e arrepia-me as costas. Ao menos refresco-me, ali dentro estava demasiado abafado pelo calor do sono.
Estou sozinha. Ninguém me pede palavras ou sorrisos, ninguém me pede nada. Vejo o mar, não muito longe, ainda acordado. Oiço-lhe a respiração, o lamber da areia gelada, a queda de cada onda. Não se agita muito, sei-o porque a lua arrasta-se num traço indefinido sobre a água. E também, a lua e o mar, ambos frios.
Talvez se cerrar os olhos e respirar fundo deixe de ser este corpo por um instante. Não porque não goste dele, mas apenas porque me atrapalha às vezes. De olhos postos em gentes, admiro-os e estudo-os embevecida pela peculiaridade de cada cara, de cada gesto discreto, de cada relação. E, às vezes, descobrem-me.
Acordo sobressaltada, esquecida que também sou como eles, carne, gestos e dor, viva e visível. Ninguém deve gostar de ser examinado assim, por isso gostava de, ao fechar os olhos e respirar fundo, deixar de ser este corpo e poder observar gentes sem incomodar ou interferir. Mas agora todos dormem, já sou invisível.
Penso neles e essa memória traz em anexo em sorriso delicioso. Passámos um bom bocado. Faltarão sempre termos para definir os nossos dias juntos. Ao contrário de quando os observo, nestes dias senti-me parte de um todo, fomos todos um só entusiasmo, uma risada só, vivemos todos o mesmo e da mesma forma. É surpreendente descobrir o uníssono das nossas vontades, das nossas loucuras. Fomos loucos e soube tão bem. Livres. Vivos.
Agora dormem. Devoro-lhes agora o olhar. O Ricardo, ali no meio, tem um braço imóvel no ar e uma mão a deslizar vagarosamente ao longo do braço adormecido. Sono profundo. O Pedro vira-se para o outro lado, enrosca-se no sofá. O silêncio permanente ritmado pela respiração sonolenta da sala. E a luz da lua-botão beija o cabelo solto de todos eles.
Não quero sair daqui. Esta paz deveria durar para sempre.
Mas o tempo não pára. As memórias ficam, o tempo segue e desenha em nós memórias. No fundo, somos ingratos. O tempo foge, diz-se. Não, o tempo ri-se de nós. É o pai que nos acompanha pelo passeio e nós, crianças irrequietas, ou corremos muito depressa e, lá no fundo, temos de esperar por ele, ou detemo-nos a observar alguma coisa, a brincar com as pedras da calçada e, quando damos por nós, ele já lá vai longe, chamando-nos para que não nos percamos. Porque o tempo mantém o seu tempo. Nem nos acompanha na corrida, nem se detém connosco. Mas não se esquece de nós, chama-nos tanta vez para que não nos percamos de vista. Sem ele estaríamos sós.
“Por aqui?” oiço. A Sofia vem até à varanda. Deve ter ido à procura de petiscos e reparou na minha figura na volta. Com o olhar que só eu lhe conheço em momentos silenciosos, lê-me o aranhiço de pensamentos. Em silêncio, vêmo-nos assim, sozinhas numa noite azul, sonhando com tudo o que foi e o que será.
Tenho de lhe falar, que me pede.
“Onde estaremos amanhã?”. O nosso tempo pai já nos chama, parámos de novo, absortas neste instante, sob o luar de hoje, no fresco da noite, na penumbra do mar, no cheiro salgado, no sossego.
Sofia sorri-me e abraça-me como se abraça o tempo. Corremos até ele para não ficarmos mais para trás, abraçamos-lhe as pernas – porque ainda somos pequenas demais para chegar mais alto -, com muita força, para o fazer abrandar, mas, ao mesmo tempo, riamo-nos com a malandrice porque sabemos que ele é bem mais forte que nós. Ri-se connosco, arrasta-nos, alguns passos. Faz-nos cócegas para soltarmos a sua perna, é impossível resistir a este golpe.
Alegremente vencidos, libertamo-nos e estendemos-lhe a mão para que nos guie assim até á próxima corrida ou à próxima paragem no nosso percurso. Mas, por agora, de mão dada, sigo de mão dada com Sofia de volta para a sala onde o sono finalmente me encontra, me deita e, com um beijo de boa noite, me aconchega e me sussurra “boa noite, meu bem, descansa agora, amanhã estaremos um pouco mais longe...”.

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