segunda-feira, março 01, 2004

A Manhã - Parte II

Talvez agora possa adormecer. Deslizo pela banheira e mergulho a minha cabeça, os meus cabelos, dentro de água. Pronto, não me moverei mais. Assim, sem respirar, sem poder respirar, e sem sentir necessidade disso, vou adormecer. Finalmente, o sono eternamente pacífico que custava a vir. Terei coragem para permanecer debaixo de água? O meu corpo não me pede nada, deixa-se estar assim, parado, a morrer calmamente. Parece que estou a sorrir, por tão obediente, mas não sei, já não sinto nada. Como a morte pode ser doce. E agora vou deixar de pensar para acabar com isto de uma vez. Adeus…adeus… água…

Cobarde! Cobarde! Mal sentes a cabeça a latejar e os pulmões a contrair, mal te sentes a implodir, a fugir, desistes, e agora, cobarde, debruçada para fora do teu destino, fora da banheira, tosses tuberculosa, tanta força para expulsares de ti toda a água que te envenenava, juntamente com a expectoração da doença que julgaste ter passado. Vem tudo atrás, sim, o escarro negro do alcatrão que o tabaco te impôs nos pulmões. Que nojo! Nojenta! Sou nojenta! Odeio-me! Afinal o que estou a fazer?! Suicidar-me só porque preciso de descansar? Sem razão, sem motivos. E lá fora, no quarto, dorme a minha melhor amiga que jamais sorriria como ela sorri se me matasse. Ela não merece, eu não mereço. Não me mereço, não mereço este corpo, este corpo não me merece, que ódio a este corpo feio e fraco que me prende, que me aprisiona à vida e ao mesmo tempo não me deixa sentir. Pedes-me demasiado, Corpo, e não me dás nada de volta. Odeio-te e quero fazer-te sofrer, novamente. Com estes olhos que me cegam, procuro o cigarro inacabado que deixei cair enquanto me enojava. Lá está, vês, Corpo?, espera que já o sentes! Com esta mão que me prende, vou alcançar o cigarro e sem hesitar vou fundir-te, Corpo, àquelas cinzas ainda ardentes. Ah, já sentes?! Pede-me agora alguma coisa! Cala-te! Deixa-me viver, liberta-me. Ou liberta este peso que me consome. Ardes! Assim como todas as outras marcas que tenho no braço, parecem rugir contigo num piedoso “Pára…” E eu paro, porque também me castigas. O teu braço, Corpo, esconde-o dentro de água onde ainda te arderá a pele durante um bom bocado. Eu, eu vou dar uma ultima passa no cigarro já apagado mas não… não consigo, largo-o para o canto entre a banheira e o armário e volto a ti, Corpo. Contorcemos sobre nós, arde ainda, tanto, sua parva, não o devia ter feito, desculpa. Eu sei… digo sempre o mesmo e repito o ritual pouco tempo depois. Desculpa, Corpo, tens que perceber, preciso de me aliviar desta dor. Dói-me por dentro, tanto, sabes disso não sabes?, preciso trocar dores. E assim, sinto. E sabes como preciso de sentir. Arde-me, mas sinto-me dependente deste ardor. Tenho de deixar-me disto, eu sei. Tenho que fazer as pazes comigo própria, desculpa-me. Tenho de me lavar… lágrimas…
Choro? Sim, estou a chorar. Que vergonha, detesto chorar. Mas preciso. Hoje vou deixar as lágrimas correr e enquanto isso, vou embalando-me para me acalmar. Fraca, fraca… fraca… Pronto, já passou, chora tudo e não deixes voltar.
Abraçada a mim própria, sentada na banheira com água, balanço-me, procuro consolar-me, enquanto os músculos da minha cara se contorcem e disformam. Os meus olhos estão tão cerrados de vergonha que as lágrimas parecem não conseguir sair. Um gemido tímido corre pela minha boca entreaberta. Choro por todo o meu corpo, não o vou evitar. O nó sempre presente que me sufoca a garganta precisa de ser libertado e agora é o momento. Chorarei tudo. Sairá tudo de mim. Lavarei toda a sujidade da minha cabeça, todo o meu negrume se dissolverá nesta água que me rodeia e que nunca mais me tocará. Preciso deste escape. Tudo o que me pesa fugirá de mim nestas lágrimas que se juntam ao banho.
Aos poucos, a minha face parece voltar à sua forma original, os músculos vão relaxando, vou-me esvaziando e acalmando-me. Já só os olhos se encontram cerrados, ainda lacrimejando mas parece que são já as últimas lágrimas. Lentamente, recosto-me na banheira, ainda agarrada ao meu braço, já não arde, não, mas a marca ficou lá. Respiro fundo três vezes, como a minha falecida avó me ensinou, para terminar o choro. Mantenho os olhos fechados.
Pronto, já passou. Vou agora ficar aqui só mais um bocadinho até me sentir confortável o suficiente para voltar ao tempo. A água ainda me beija, ainda me lava, ainda me acalma. Diz-me para descansar um pouco, agora que estou mais leve, diz que se encarregará de exterminar aquelas lágrimas, aquelas cinzas, aquela imundice. E eu relaxo os músculos da minha testa e tento sorrir, um sorriso amarelado, e agradeço à água. Felizmente ela esquece aquilo que se passou, quem me dera esquecer também. Mas não vou recordar, vou agora simplesmente descansar mais um pouco…
Começo a tremer. Só agora reparo que a água está fria. Aqui parada é natural que comece a ter frio. Tenho que sair do banho, já chega. Abro os olhos e só agora, olhando para o tecto branco por cima de mim, sinto a dor de cabeça que me trouxeram as lágrimas. Devagar, por causa das tonturas que esta dor me pode dar, levanto-me e saio da banheira. Automaticamente, alcanço a toalha que se encontra pendurada atrás da porta. Seco o meu rosto e, em seguida, o pescoço, os braços, o tronco, as pernas e, por fim, enrolo a toalha à minha volta. Quando me viro para alcançar a toalha do cabelo deparo-me comigo no espelho. Continuo pálida. Mas agora tenho os olhos muito inchados, as olheiras bem fundas e negras e o braço vermelho. O espelho olha-me com repreensão. Desvio o olhar, não lhe vou responder, também não me orgulho do que aconteceu à bocado. Não vou voltar a para admirar a minha fealdade, só me deprime e não quero que isso volte a acontecer.
Enquanto enxugo o cabelo, tenho a cabeça inclinada e observo a banheira onde estive. Só eu sei o que ali se passou. Eu e ela, e estas paredes. Mas, apesar disso, a banheira parece pouco se importar; ainda com a água e lágrimas, está tão calma, serena, parada. Será que aconteceu mesmo? Ah, sim… ali está o cigarro, não me posso esquecer de o enviar pela sanita para que a minha companheira não descubra.
Enrolo, por fim, a toalha à cabeça com o jeito que sempre faço. Tiro a tampa da banheira e a água começa a desaparecer pelo buraquinho. Pego no cigarro como se não fosse meu e atiro-o para a sanita, puxando imediatamente o autoclismo. Sem me deter, visto a roupa interior enquanto oiço a água a fugir pelo cano. Visto o roupão e ainda observo as últimas gotas a caírem pelo ralo da banheira. Adeus, Momento. Pego no pijama suado e preparo-me para sair da casa-de-banho. E, só agora, me detenho.
Com a mão no puxador e a roupa no outro braço, paro, por momentos. Vou voltar. Vou viver. Quando abrir esta porta a frescura desta manhã vai entrar aqui, vai cheirar-me, o tempo vai voltar a andar e eu vou voltar a viver. Como se estivesse a representar um grande filme de cinema, rodo devagar o puxador e vou abrindo a porta. Sinto-me como estivesse a deixar o local de um crime cometido por mim. Um crime hediondo e incompreensível. E cada vez se torna mais incompreensível, até para mim, ao abrir a porta da casa-de-banho.
A janela do fundo do corredor ilumina-o. Tanta luz, tanta vida mas paredes estáticas. Ao sair da casa-de-banho sinto o cheiro da manhã. Fresco. Doce. Agradável. Era até capaz de me pôr a sorrir. Como poderia eu não querer viver esta manhã que se apresenta tão bela? É tão bom estar viva.
Chego ao quarto entretida com estes meus pensamentos. O rádio está ligado, oiço uma música muito simples e muito agradável. Ideal para uma manhã aparentemente tão doce. O despertador supostamente desperta, mas esta musiquinha não consegue acordar ninguém, muito menos a minha companheira.
Atento agora nela. Ainda está na mesma posição desleixada de à bocado. Nada mudou no quarto. Apenas chegou mais luz e a música entrou. Em todo este descanso, sinto-me a mais. Olho para ela. Se soubesses o que aconteceu… perdoar-me-ias? Mas ainda bem que não sabes. Assim, é como se nunca tivesse acontecido. Assim, voltarás a sorrir-me e voltarás a mandar-me das tuas piadas e bocas criticas mas carinhosas.
Mas aconteceu. E isso vai-me atormentar durante uns tempos. Não foi só hoje, pois não?! Já não é a primeira vez que o faço e tenho sempre vergonha. Mas não deixo de o repetir. Tenho que me sentar. Na ponta da cama, de frente para a janela iluminada. Não o posso repetir, não me posso voltar a humilhar a este ponto. Acho que preciso de ajuda. E preciso de me perdoar. E, para isso, preciso de parar. Não o devia ter feito. Mas agora está marcado.
Ainda me dói a cabeça, já pouco mas dói. Preciso de descansar. Parece que o cansaço e o sono voltaram. Antes de me vestir vou só deitar-me aqui um bocadinho, vou descansar a cabeça. Não, não vale a pena pôr-me debaixo dos lençóis, é só um bocadinho, se calhar nem durmo, é só fechar os olhos. Estou cansada…
Deito-me sobre a cama, agarrada ao braço. E no preciso momento em que adormeço, a minha companheira acorda do seu doce sonho.

FIM

PS: Aconselho a leitura deste texto ao som da música Caramel de Blur. E, se possível, o momento 3min e 50 s da música estar no momento da pausa, dos dois parágrafos seguidos (depois de “Adeus…água…” e antes de “Cobarde! Cobarde!”) … Se não conseguir ler tão depressa (o que é muito provável…) é favor parar a música até chegar a esse momento porque se não não se sente o que se deveria sentir na altura...

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