terça-feira, novembro 04, 2003

Dogville - Part II

Afinal o que nos distingue, nós, seres humanos, Humanidade, dos restantes animais? A nossa racionalidade? E isso é o quê? Não é que não saiba mas preferia que me especificassem melhor. O nosso pensamento, é isso? A lógica que seguimos sobre os conhecimentos que adquirimos? A forma como nos afastamos (por vezes...) do instinto e como conseguimos organizar o saber? Muito bem, talvez isso nos distinga dos restante animais, já que estes não sabem criar vacinas ou automóveis para uma qualidade de vida superior. Mas também há mais coisas que nos distinguem dos animais, não há? Devido à nossa capacidade mental superior somos capazes de distinguir os nossos actos, e os dos outros essencialmente, como bons ou maus. Os humanos têm a possibilidade de serem bondosos, piedosos, generosos, civilizados. É isso que nos ensinam, o Bem. Temos a possibilidade, e dever, talvez, de nos entreajudarmos e de sermos bons humanos. Temos ética, algo que provavelmente os animais selvagens não têm. Ninguém os condena por matarem outros seres, por terem vários parceiros sexuais, por se comerem uns aos outros, por lutarem entre si pelo poder ou pela fêmea, por roubarem a comida dos outros. Somos então superiores a todos os outros os outros seres vivos. Julgamo-nos superiores. Concordaria se simplesmente fossemos sempre superiores. Mas, por vezes, vemos certos actos tão animalescos, tão insensíceis, tão egoístas que nos fazem duvidar da capacidade de auto controlo que caracteriza o Humano. Por detrás de qualquer convicção, doutrina, valor, parece estar sempre o lado animal e selvagem do Homem. O grotesco, o insensível, o impiedoso, o carente, o perverso. Será que alguém poderá ser sempre bom especime do nosso ser, mantendo-se racional e bom mesmo quando algo maléficamente poderoso o chama?
Foram estas questões que se me depuseram ao ver o filme Dogville. Não posso ficar indiferente a um filme como este. Cheio de simbolismo e ideias que nos vão fazendo comichão na mente. E ainda hoje, passadas quase duas semanas de ter visto o filme, ainda me perturbam.
Será que todos nós procuramos poder para podermos dispôr tudo a nosso prazer? Quando Grace chega à vila e se dispõe a ajudar e trabalhar uma hora por dia para cada casa, ninguém parece ter trabalho para ela, ninguém precisa de nada. Provavelmente, os habitantes desta pequena povoação eram felizes, pelo menos, conformados: viviam bem e pacatamente naquele espaço só deles, sem preocupações de maior,sem muito trabalho, apenas rotina que repetiam sem preocupação para se sustentarem. E não estavam preparados para aquela "prenda". Eram humildes e provavelmente sentiriam-se envergonhados se aceitassem a ajuda da boa-vontade de Grace; estariam a rebaixar-se, a dizer que precisavam de ajuda. Por isso, Grace, graças ao apoio de Tom, começou a trabalhar em coisas "desnecessárias" para aqueles habitantes. Começou a realizar coisas que eram importantes que fossem realizadas mas que ninguém diria que sim, ninguém poderia dar parte de fraco. Grace aceitou esta "definição" do seu trabalho, assim como o narrador que, com uma certa ironia e tom de brincadeira, nos descreve os trabalhos "sem importância" que Grace agora realizaria. Trabalhos que serviriam apenas para ela, coitada, poder ter algo para fazer. E, com o tempo, as mão perfeitas e puras de Grace vão-se habituando ao trabalho, com gosto, e depressa as suas mãos não se distinguiriam das dos outros habitantes. Por uns tempos o seu trabalho é apreciado, quer da parte de quem o realiza, quer da parte de quem o bondosamente oferece. A parte feliz da história.
Mas, com o passar do tempo, os habitantes começam a aperceber-se do poder que lhes foi dado sobre Grace. Ela precisa do consentimento de todos para poder permanecer na aldeia e fará qualquer coisa para não ser entregue a quem a procura. É então que cada habitante, à sua maneira, vai-se dando conta das suas necessidades e desejos e aproveita-se da fraqueza de Grace para a obrigar a satisfazê-los. A bondade da aldeia degrada-se, apodrece sem que Dogville se dê conta. Quando a polícia começa a colocar cartazes de Grace pela aldeia, os habitantes exigem uma maior demonstração de agradecimento de Grace, aumentam-lhe os turnos de trabalho e começam a criticar os seus erros pontuais. Os trabalhos "desnecessários" parecem agora tornar-se indespensáveis e Grace começa a deixar de ser tratada como uma amiga, como o era, ou tentava ser, mas apenas como uma criada que se tem de limitar a fazer o que os seus amos lhe dizem. Grace corre para cada trabalho e quando passa pelo pequeno carreiro entre as três arvores cuidadas, é repreendida: aquele carreiro só pode ser usado pelos habitantes daquela terra e ela era apenas uma visitante, não estava ali há muito tempo. Grace não reclama, como o leitor ou o espectador poderão fazer, por tal acto tão exagerado por algo insignificante como a passagem por um pequeno carreiro. Tem de se limitar as contentar-se pelo facto de continuar naquela aldeia de gente simples.

(continua...)

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