segunda-feira, março 28, 2005

Tenho de te denunciar. Desculpa mas preciso de tirar isto de mim. Porque eu descobri-te, evitaste-o, mas também tu não me conheces e não sabias o quanto perspicaz posso ser.
Tu simplesmente não sentes. Estás ausente. Suponho que vivas apenas à espera, mas nem tu sabes de quê. Estás ali apenas porque esperas pelo momento em que te vais embora para outro sitio. Para casa, talvez. Talvez seja ali que tu és preciso, que a tua atenção e vida são necessárias. Penso que esperam muito de ti em casa. E vens para o pé de mim descansar. Mas não sentes nada. Tens de estar preparado para voltar para casa, é aí que podes sentir. Mas, mesmo assim, não sei. Talvez nem sintas em casa. Talvez estejas só presente como te pedem. Andas cansado disso, não é verdade? Deixa, talvez no próximo ano já não seja assim.
E então, como posso eu explicar-te perante o que aconteceu? Foi esta a única forma que encontrei. E eu podia ter desconfiado antes. Sozinho, longe, quantas vezes te vi assim pelo canto do olho. Talvez tenha sido isso que mais me cativou, o olhar distante. Mas depois, se alguém se aproximava sorrias logo, sempre da mesma forma alegre e reagias como se fosse o dia mais alegre da tua vida. E, novamente, quando esse alguém se afastava, caías para longe, como te encontravas antes. Vi isso, reparei, até mesmo comigo eras assim.
É por isto que digo que não sentes nada por nós. Simplesmente reages. Se alguém te sorri, tu sorris de volta. Devolves aquilo que esperam de ti. Como geralmente os rapazes apenas te pedem boa-disposição, é o que lhes dás. Mas não a sentes porque estás apenas à espera de voltar para casa (até porque várias vezes vais a casa num pulo, enquanto ninguém te vê). E como não queres que ninguém te pergunte porque não sorris, não saberias explicar, tu sorris e ninguém te incomoda. Será que reparam em ti? Será que vêm algo atrás do sorriso?
Eu falei contigo uma vez sobre isso, lembras-te?, uma única vez e correu-me tão mal. Nem me respondeste, não disseste nada. Só baixaste o olhar e, sim, estavas com o teu sorriso do costume. Mas havia algo mais e tu sabias que tinhas sido descoberto. Disseste-me algo do tipo "tens razão, não está tudo bem, mas não há nada que possamos fazer". E eu não soube responder a esse gesto. Atrapalhei-me, ao contrário de ti, não sou perita em fazer e dizer o que esperam que faça. Mas fiz com que soubesses, ali, que eu estava contigo e que te tinha visto. Agora, pergunto-me, será que tomaste atenção, será que foste de alguma forma tocado por este gesto? Não, não foste, provavelmente, mal chegaste a tua casa, esqueceste imediatamente o que se tinha passado.
Agora que penso... Sempre tive medo que chegasses a casa e te esquecesses de tudo. Talvez sempre tivesse dentro de mim uma suspeita do que agora tento afirmar. Sempre pensei que em casa não pensasses em nada do que se tivesse passado durante a manhã. Também não sei no que pensarias, isso ainda não descobri, tens de ser tu a dizer-me. E, a única vez que te esqueceste, foi provavelmente a mais importante. Mas chegaste com aquele ar tão miserável, tão envergonhado, que não pude culpar-te. Já passou, o meu coração estava prestes a rebentar, mas tu chegaste, enfim, e já passou.
E como consegues olhar tu daquela forma tão intensa? Olhas para todos como se estivesses fascinado com o que te dizem, como se te fosse um grande prazer estar ali, diante daquela pessoa, conhecendo-a. Cheio de um sentimento que não tens. Mas como é que poderia adivinhar se mo mostravas com tanta força? E não era só para mim, eu perdia-me no teu olhar, era demasiado intenso para mim, mas via-o pousado em todas as outras pessoas. Não sabia distingui-lo. E, novamente, não ouvi esta pista, não escutei aquilo que me dizia, que não era para ti mais nada.E há algo que ainda não se consegue justificar com tudo isto: aqueles gestos que tiveste comigo, aqueles que guardei só para mim. Não foram reacções a algo que eu te tenha feito ou dito porque eu não queria ter chegado onde cheguei, não sabes disso, talvez neste momento julgues que desde o início te quis como naquele momento te fiz parecer. É mentira. Não te queria. Eras apenas uma cara bonita que me entretinha a vista e um rapaz interessante para descobrir. Daí nunca ter querido aproximar-me demais. Mas houve certas coisas que me empurraram. E, algumas delas, foram as tuas atitudes. Não as pedia, mas tu, sempre com o sorriso pendurado, brincavas comigo e eu fiquei sem saber o que pensar. E, ingénua, ouvi o que me diziam. Era praticamente o mesmo que eu já me começara a dizer, mas dito por fora, por outros, parece ser mais credível. O que mais podia eu pensar? Depois de todos os aqueles pedaços de momentos e de todas as bocas (que incomodavam a minha paz e decisão interior), não podia ter dúvidas.
E chegou o dia a que me tinha comprometido. Olhava para ti, umas horas antes, e sabia, não esperava, sabia que seria naquele dia. E, ao longo das horas, fui-te dando a entender. Que parva, detesto ser tão óbvia. Podias ter-te afastado, ter recusado as minhas aproximações. Mas não, nunca o fizeste. Por isso, ainda mais confiante fiquei. E no fim... Tu sabes o que aconteceu não preciso de voltar a dizer. E senti-me tão mal. Não foi culpa tua. Talvez se tivesse evitado, se me tivesses dito mais cedo. Ninguém nos compreende. Todos esperavam que acontecesse. E, provavelmente, muitos deles ainda pensam que aconteceu mesmo. E sorriem, "tão bonitos juntos". Foi isso que me magoou mais no momento. Odiei-me com muita força. Nunca quis passar por aquilo, nunca quis dar motivos a ninguém para dizerem uma coisa daquelas. Tinha acordado comigo isso. Mas não é sobre mim que quero falar, é a ti que quero denunciar.
Muito bem, reagias como te pedia. Não me impedias de me aproximar, fazias-me acreditar que estava tudo bem. Fiz-te, uns momentos antes, uma pergunta que podias ter aproveitado para me mostrares de forma subtil que não era aquilo que querias. Não o fizeste, fizeste-te de desentendido. E depois sorrias enquanto aqueles outros sorrisos embevecidos e amorosos que nos pediam algo que não poderíamos dar me arruinavam a noite. Como explicar-te sem ser pelo facto de não sentires nada por ninguém?!
Mas sabes, algo me leva a crer que tu até sentes. No fundo, és humano e os humanos têm de sentir. Só que, ao contrário de nós, aprendeste a ignorar os teus sentimentos. Não sei como o fazes, mas fá-lo muito bem. Grande auto-controlo. Mas tu já nem sabes que o fazes. Quero acreditar que tu até sentiste alguma coisa por mim (desculpa mas não acredito que aquele olhar fosse apenas fingido, ninguém consegue fingir assim...). Talvez houve algo mais, mas tu, sem saberes, ignoraste completamente isso, não ligaste nenhuma e não deixaste que isso crescesse. Respondeste-me na altura automaticamente, como tinhas previsto responder sempre que alguém te perguntasse isso. Não digo que, se te dissesse isto tudo (sim, porque não tenciono mostrar-te este texto, seria um vexame para mim), tu começasses a tomar atenção a isso que ignoras sem saber. Não, tu não o farias porque faz parte de ti, tu és assim e não vais querer mudar. E, quem sabe, nem sequer tens um décimo do interesse que eu te dei com esta história toda. Provavelmente achar-me-ias histérica e desesperada por arranjar uma maneira de te convencer a gostar de mim. Nada disso, meu caro. Tudo isto é apenas uma forma de me expressar, de dizer as conclusões a que cheguei que podem ser muito falsas. Só precisava de uma justificação. E eu não me importo de inventar uma como esta. No mínimo, fica interessante. E eu, espero, fico mais leve.

Quem diria, hoje estou mais perto de João que de Sofia...

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