Não fui feito para isto, Senhor Doutor. Voltou ao consultório este mês, sem grande vontade. O hospital não era para si, nunca o fora durante aquelas sete décadas de saúde intacta. Orgulhava-se de não o conhecer.
Acabaram por se cruzar há poucas semanas, quando o almoço farto com os amigos da malha os apresentou. A dor viera rápida e intensa. Feito homem, quisera aguentar-se, mas a vida era-lhe cara e não recusou a visita ao grande edifício de bata branca.
Não demorou muito até poder exibir outra marca de guerra (desta vez, de um inimigo diferente) na sua larga barriga, das que crescem com o ócio dos dias livres. Sorri às enfermeiras, a quem insiste em impressionar com as vitórias das cartas, a esperteza saloia e algum humor brejeiro facilmente disfarçado com as brincadeiras familiares.
Tudo correra, obviamente, bem, ou não seria ele o valente do bairro. Sairia refeito daquele hospital, após os dias de recobro pós-cirúrgico e alguns exames de rotina para confirmar a sua saúde de ferro.
Voltou este mês, com os exames. Surpreendeu-se, afinal não passara com distinção na prova, mas sim com umas cábulas escondidas nas entranhas, que teriam de ser confiscadas pelo cirurgião. O joguinho na sombra da Alameda adiou-se mais uma vez.
Os olhos penosos dos amigos não facilitam o equilíbrio da postura e a conversa dos doutores é silenciosa. Tem que ser, é o que lhe dizem. De novo no consultório, no hospital de que não se orgulha de reconhecer, dois médicos, altos, jovens e invencíveis, discutem entre si a melhor abordagem para desbravar de novo as vísceras matreiras daquele doente, sentado, de dedos enleados e pernas tensas, de olhar inquisidor preso nos lábios sussurrantes dos grandes, que aguarda instruções e uma solução simples.
Custou-lhe a ausência e interrompe. Sabe, Senhor Doutor, é que não fui feito para isto. O senhor doutor reconhece o velho e pergunta porquê. Sabe, Senhor Doutor, é que eu fui feito para aproveitar a vida, para me divertir, sabe como é. Sempre tive muita saúde. Sem demora, o doutor abstrai-se de novo, desta vez no ecrã onde preenche espaços de burocracia branca para avançar com a cirurgia, talvez ainda este mês consiga arranjar vaga. Sabe, Senhor Doutor, é que eu sinto-me bem! Não me dói nada, não sinto nada! Como bem, Senhor Doutor, não tenho mesmo queixas nenhumas! E o doutor imprime a folha bem preenchida para trazer da próxima vez, não pode esquecer, onde tem as informações que necessita (não as que procura). Tem mesmo que ser? Pois tem, tem aí umas coisinhas que temos de tirar. Os olhos do velho decaem com ele. Interrompe-se a conversa para novos teclados acelerados. O velho recupera, sem pressas, os exames e prepara-se para sair.
Eu sinto-me bem… Não fui feito para isto, fui feito para aproveitar a vida. A voz arrefece e confessa-se, sou fraco. Sozinho no seu diálogo, apercebe-se por fim da veracidade do que diz. Ao levantar-se vagarosamente, de olhos cheios e voz enfraquecida, não entusiasma o grande cirurgião, alto, jovem e invencível, para um sorriso honesto. Não encontrará ali mais ninguém. Terá de procurar a coragem noutros companheiros. Sou fraco. Sente os dedos apressados do senhor doutor e afasta-se.
A voz não poderá tremer de novo ao chegar à Alameda.