Após
um dia encarcerada no pequeno quarto de volta de trabalhos, autorizo-me um
passeio em liberdade de consciência ao final do dia. Programara regressar à
cave da livraria e ver outro filme expressionista alemão, evento que se
publicitara pela internet. Porém, ao chegar, informaram-me que era um erro, que
ficaria para o próximo mês. Desiludida, recuso-me a ir cega de volta à reclusão
caseira. Demoro-me no passeio pela Grácia. Surpreendo-me sempre com as imensas
crianças que passeiam os pais pelas ruas, com o movimento alegre. Namoro os
doces que me acenam das pastelarias, sem me conseguir decidir por nenhum. Noto,
atenta, cada estabelecimento aberto, o que nos propõe, o que nos convida a
provar. É um bairro bonito para passear, um bairro pleno para viver.
sábado, janeiro 09, 2016
sexta-feira, janeiro 08, 2016
BCN #82
Entusiasmo-me
com o projeto e ponho mãos à obra. No fundo, é isto que sonho. Escrever,
transmitir, partilhar. Tenho, talvez, já algo para dizer, algo dentro de mim,
que construi pela experiência, pela atenção e curiosidade por aquilo e
especialmente por quem me rodeia, pelas minhas e pelas suas vivências e pela
integração de tudo isso na formação teórica onde invisto. Metabolizo tudo isto
e, através das palavras que me são amigas, transcrevo-o em discurso direto e
limpo. Assim o espero. Escrevo o rascunho do que quero dizer e entusiasmo-me.
Vou construindo o sonho.
quinta-feira, janeiro 07, 2016
BCN #81
De hoje guardo uma imagem. Saio de casa bem cedo, o que tem
correspondido a ver o nascer do sol no meu percurso até ao trabalho. Hoje,
talvez para dar ânimo no regresso aos dias laborais depois da festa, o céu
animou-se. Espalharam-se nuvens de forma a absorver bem a luz do sol que se
espreguiçava e incendiar o céu.
Da paragem de autocarro, onde espero pelo meu transporte, há
uma abertura por entre as ruas paralelas e edifícios clonados que me permite
desfrutar do espetáculo. O céu arde em laranjas e vermelhos sob um azul tímido
que relembra que o dia ainda agora começou. Assim, sorrio e sigo viagem.quarta-feira, janeiro 06, 2016
BCN #80
Dia de Reis, dia de folga. Uma quarta feira de pausa a meio da primeira semana de trabalho calha sempre bem. Mesmo que seja para ficar recolhida em casa. Porque ler, dormir sesta e aproveitar para pôr a conversa em dia com alguns amigos que estão longe também é importante.
Termino um livro e começo outro. A experiência aqui tem servido para me reencontrar com os livros. Entendo que me faz falta este tempo em transportes públicos para reconquistar o entusiasmo. Para mim, já voltou. Já penso em livros, medito-os, antecipo a próxima viagem para ler mais umas poucas páginas, comento o que leio, recomendo-o, questiono-o. Ler faz bem à saúde.
terça-feira, janeiro 05, 2016
BCN #79
Como uma criança espanhola, entusiasmo-me com a Cavalgata dels Reis Mags. Corro para o centro da cidade para não perder pitada. Apresso o passo para ver chegar os reis, mas chego a tempo apenas de ouvir a presidente da câmara, Ada Colau (um nome a não esquecer), recebê-los, discursar brilhantemente sobre o que significa, no fundo, este dia, e entregar-lhes, conforme a tradição, a chave mágica da cidade que abre a porta de todas as casas. O rei Melchior discursa em rima e lembra que não importa se és alto ou baixo, se tiveste melhores ou piores notas, interessa que deste o teu melhor. E que esta é uma data de encontro, entre as crianças e os seus irmãos, mais velhos ou mais novos, e com os seus pais (se deixarem o Whatsapp, avisou).
Corremos todos para o circuito por onde irá decorrer a cavalgada. Os meninos sentados na borda do passeio aguardam com paciência a hora da chegada dos reis. A noite cai e, por fim, começa o cortejo. Impressiona-me a dimensão do mesmo, o número de pessoas que por nós passam, dançando, representando, recolhendo as cartas das crianças, sorrindo, alegrando. Uma máquina recicladora de chupetas promove a entrega da mesma para que se transforme em balão. As cartas são recolhidas em mão e, por vezes, num saco iluminado que desce sobre a multidão de pessoas que assiste à parada. Um carro alegórico lembra que, para quem não se portou assim tão bem, só irão receber carbó. Os reis passam e acenam. E, no fim, o momento para que todas as crianças aguardam ansiosamente com um saco na mão. Caramelos para todos! Uma máquina de disparo de caramelos cria uma chuva de doces sobre todas estas famílias e as crianças atiram-se ao chão em busca de caramelos. Os sacos vão ficando mais cheios e o entusiasmo é contagiante.
Agora, por fim, está na hora de ir para casa, dormir, para que amanhã de manhã se abram os presentes que os reis distribuíram durante a noite. Bons sonhos!
segunda-feira, janeiro 04, 2016
BCN #78
É bom sinal quando sabe bem regressar ao trabalho. Especialmente quando tenho a oportunidade de conhecer novas pessoas. Doentes, internadas para poderem melhorar, mas pessoas, com histórias que importam e que determinam o nosso encontro aqui neste lugar. É bom ter tempo para sentarmo-nos e conversarmos até que, por hoje, não fique nada por dizer. Amanhã haverá, certamente, mais. Mas por hoje, para um primeiro contacto, fica tudo dito. Tudo escutado. Porque só assim poderemos ajudar alguém. Mais que um projeto terapêutico farmacológico, certamente eficiente no momento atual, é o entender a pessoa no todo, o compreender o caminho que o trouxe aqui, o que terá de mudar para que haja uma mudança efetiva e um crescimento pessoal. Há que conhecer o nome, mais que a patologia.
domingo, janeiro 03, 2016
BCN #77
O Museu Picasso é um baú de memórias, um album de fotografias. É um caminhar por entre os anos da juventude prolixa que fermenta em azul e rosa e desemboca na psicotização da imagem. Não há filas para fotografar os clássicos porque não estão ali, está apenas o crescimento de um artista, para ser apreciado em movimento e não aos magotes.
Dizem que a pérola do museu são as suas interpretações d'"As Meninas" de Velasquez. A pérola é entrar no espaço reservado para elas, dar de caras com a obra cinza, reconhecer com um sorriso a reinterpretação, circular pelo restante espaço, caminhar pelo percurso que levou até ao quadro final e, à saída, cruzarmo-nos de novo com a obra, agora apreciada à segunda passagem com uns olhos mais experienciados. Que tempo bem passado nesta construção identitária artística.
sábado, janeiro 02, 2016
BCN #76
Regresso a Barcelona e, para não dar espaço à eventual tristeza por deixar quem mais amo de novo em Portugal, vou aproveitar o fim-de-semana. Regresso ao museu dos sábados à tarde, o Museu Nacional d'Art de Catalunya. Vê-se que choveu estes dias, o céu está mais limpo e a paisagem é mais clara. Depois de conhecer Ramon Casas, Santiago Rusiñol ou o Antoni Fabres, apreço-me para aproveitar os últimos raios de sol sobre a cidade apreciados no terraço do museu. O céu limpo, a luz forte da hora do dia e uma brisa que desperta. Lá em baixo, junto à fonte de Montjüic, soa uma pequena parada que, imagino, faz alusão aos reis magos que estão a chegar. Dou a volta ao museu nos seus telhados e vejo o fogo do sol que se põe contrastar com as linhas certas da Anella Olímpica. Tira-se a fotografia. Daqui respiro melhor o ar desta Barcelona imensa.
quarta-feira, dezembro 23, 2015
BCN #75
Último dia antes do regresso a casa para as festividades. Os pacientes já o sabem e um, em particular, relembra-o com maior significado. Com a hipertímia em ebulição no seu corpo, procura-me, pergunta-me como me pode encontrar em Portugal. Pede-me nomes de bares, "basta chegar lá e perguntar por ti?". Promete que, quando sair, me irá visitar no meu país. Pede mais um abraço.
A especialista também não esquece que será o meu último dia na sua equipa. "Te encharé de menos", diz-me, na expressão espanhola que mais se aproxima às saudades portuguesas. Anima-me o carinho, apesar de saber que a falta que sentirá poderá ter mais que ver com o trabalho de que a vou aliviando nestes dias. Mas é Natal, há que pensar no carinho.
terça-feira, dezembro 22, 2015
BCN #74
Desde que aqui cheguei que está internado, já lá vai mais de um mês. Vemo-nos todos os dias, conversamos todos os dias. Comigo já chorou, já riu, já se zangou, já pediu perdão. Hoje está particularmente agitado. Apesar de já ter sido observado por outro médico e já ser o final da jornada, entendo que não deveria prescindir da conversa diária. Chama-me, inquieto, entusiasmado. Vamos para junto da janela, propõe. Não faz parte do protocolo da observação clínica, mas pouco importa neste momento. Aceito. Prepara ambas as cadeiras, viradas para a imensa janela que abre a vista para a imensidão da cidade de Barcelona. Está um dia bonito, solarengo, céu limpo, o mar azul ao fundo. Sentámo-nos. Relembra o tempo todo que passou desde que está internado, já lá vão muitos meses. E está um dia tão bonito lá fora e eu aqui, diz. Não minimizo. Bem sabemos que tanto tempo aqui também faz estragos ao humor de qualquer pessoa. Mas, enfim, há que entender o porquê de tanto tempo, ninguém tem especial prazer em mantê-lo internado, mas a gravidade da situação assim o exige. E pelo menos daqui temos uma vista impossível de apreciar ali de baixo, junto aos carros, escondidos entre os edifícios altos que nos limitam a vista. Por hoje, então, apreciaremos a vista e aguardaremos por dias melhores.
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